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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

28/05/2021 08:02

Vou confessar: há dias adormeci por um instante num serviço, talvez quatro ou cinco segundos, se calhar dez ou vinte, e até sonhei. Aquilo era uma cena com políticos a falar a falar a falar, enfiados numa sala com pouca luz, logo depois do almoço. Vejam bem: políticos a falar depois do almoço, numa sala à média luz. Um deles participava por videoconferência e eu assistia na qualidade de jornalista, sentado num canto, invisível.

O tema era dramático, sem dúvida, muito dramático, mas por agora pouco mediático. Uma simples questão de pessoas que sofrem, ou parecem sofrer, porque são loucas ou toxicodependentes ou apenas desgraçadas por azares incríveis da vida, coisas difíceis de entender, maldições, tentações e o diabo a quatro.

Vamos lá ver o que se pode fazer por esta gente, diziam os políticos a falar a falar a falar. Vamos lá ver quem faz o quê, como, quando, onde e mais não sei o quê. Quem paga? Quem executa? E o governo? Onde está o governo? É sempre a mesma coisa!

E eu ali no canto a abrir disfarçadamente a boca atrás da máscara, a minha boca escancarada, desmesuradamente escancarada atrás da máscara, repetidamente escancarada atrás da máscara. Os olhos lacrimejantes. Uma sonolência atroz, persistente.

E, nisto, passei para o lado de lá.

No lugar das pessoas surgiu então uma árvore enorme, bela e frondosa, como as que eu desenhava na escola primária, o tronco castanho, a folhagem verde, ou como as que povoavam os lugares da minha infância e foram depois abatidas ao correr do tempo ou tombaram por si, umas a morrer de velhas, outras massacradas por tempestades sem nome, tantas violadas pelo desejo virulento do progresso – castanheiros gigantescos, incenseiros majestosos, eucaliptos brutais, jacarandás encantadores, sumaúmas possantes, cedros negros e imensos – todas essas árvores reunidas numa única, ali, diante de mim, na penumbra da sala onde os políticos falavam falavam falavam e cada um deles era já um galho específico, os seus cabelos eram as folhas e as suas vozes eram o sussurro do vento atravessando essa árvore primordial, incluindo o que falava por videoconferência, coisa que lhe atribuía um toque de ramo espacial, interplanetário.

Se calhar, até falei no meio do sonho.

A Pat diz que eu costumo falar quando estou a dormir ou quase quase a dormir. Digo coisas absurdas e divertidas, ao que se segue um atropelo de palavras oníricas, estranhas e incompreensíveis, sem tradução possível. Por exemplo:

– Quem são as pessoas ao fundo? Vamos lá ver caramatura catacatungo matatungo alabulungo fungungum…

E assim por diante.

Ela já tentou gravar a conversa, mas ainda não conseguiu. Volta e meia, contudo, desata às gargalhadas e eu acordo, perplexo:

– O que foi? O que foi?

Admito que possa ter feito uma intervenção destas enquanto os políticos falavam falavam falavam e eu sonhava que eles eram uma árvore do outro mundo, já com a esferográfica a escorregar-me da mão, prestes a cair, e o corpo mole a deslizar devagarinho pela cadeira abaixo, cinco, dez, vinte segundos, naquela meia-luz da sala, quem sabe, terei dito um disparate qualquer, talvez assim:

– Eles estão lá em cima.

E, antes de abrir os olhos, eventualmente reforcei:

– Maranga falanga.

Ou outra coisa do género.

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