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Artigo de Opinião

silviamariamata@gmail.com

10/03/2024 08:00

As longas amizades perduram no tempo, porque, apesar de algumas bicadas pela vida fora, o amor dos amigos corre ao encontro um do outro, sempre lindo, sempre renovado como a Primavera. Assim é com as velhas amigas, mesmo no moderníssimo século XXI. E para dizer coisas das amigas, puxa-me primeiro a memória para uma mulher do século XX, a senhora Maria José de Umbelina. Era ela que me encantava contando contos de feiticeiras que subiam pelo ribeiro fora nas noites de breu e enrolavam as canas vieiras num trabalho sem fim. Estas histórias de vez em quando visitam-me, e dá-me para isto. É verdade que se diz que é velho aquele que vive de lembranças e que é jovem aquele que vive de sonhos. Pois sim!

Velhas amigas eram, nos anos 70 e 80 do século passado, a senhora Maria José, a senhora Conceição e a senhora Maria, que levavam as manhãs de sábado varrendo o terreiro e as veredas como quem arranja um altar. Falavam do seu tempo de mocidade e do tempo em que os homens limpavam o ribeiro e todas as famílias podiam subir por lá fora até casa, como se o ribeiro fosse uma estrada. Num sábado, elas pararam com as vassouras, sentaram-se na vereda ao pé da fonte, ofereceram tabaco umas às outras e falaram dum passo que sucedeu no Caminho do Chão e riram-se. Esse fora num dia longínquo, talvez pelos anos trinta, em que estas amigas regressavam a casa, vindas da casa de bordados, cansadas, moídinhas de trabalho, o suor pela cara abaixo. E vai daí, a senhora Maria José de Umbelina, que já não podia se apertar mais, ganhou coragem e pediu com delicadeza às amigas “Pequenas, vocês dão-me licença que eu dê um peidinho?” “Pois dá, Maria José”, disse a senhora Maria. Mas o que saiu dali não tinha nada de diminutivo. Era um trovão aumentativo. E claro que a senhora Maria retorquiu “Credo, Maria José, eu não sabia que ia ser tão grande!” E riram. Foi isso que eu apanhei, nos anos oitenta, nas suas conversas ao pé da fonte. Elas riam ainda, cheias de luz nos olhos, apesar de tão velhinhas, lembrando os passos duros do passado, entremeados com inutilidades do quotidiano onde só elas encontravam beleza e riso.

No século XXI, também há amizades bonitas, talvez mais complexas e variadas. É o caso de duas amigas reformadas. Ambas trabalharam no ensino, uma no Básico, outra no secundário. Gostam de se acompanhar nas voltas do dia a dia, vão juntas tratar do passe da terceira idade, vão pagar as contas, à ginástica, à feira do livro, ao teatro, ao café e etecetera. Aqui há dias pegaram-se. Uma queria que a outra lhe mostrasse, no papelinho do multibanco, o extrato da sua conta. Uá! “É só para ver se tu recebes o mesmo do que eu!” Estão arrufadas, seriamente! E nisto, eu lembrei-me de um caso do século passado: quando o senhor Alvarinho, o nosso carteiro, trazia os envelopes com os vales das reformas e as mulheres corriam para a vereda à espera daquela grande fortuna, havia dias em que umas tomavam em conta dos envelopes das outras para lhos entregar depois. Ora, indo o carteiro embora, todas elas dispersavam e senhoras dos envelopes alheios, era vê-las levantá-los ao alto à luz do sol, para descobrirem algum número a luzir atrás do papel. Foi assim que minha tia Elvira descobriu que a triste de minha mãe recebia mais duas patacas do que ela! Ela, que tinha trabalhado na casa de bordados, que tinha gastado sola de sapato a descer e a subir, com chuva e nevoeiro e minha mãe, no abrigo da sua casinha, sem correrias nem patrões, bordava quando podia e ganhava mais duas patacas do que ela! Isto é que é um mundo mal injusto! “Isto é tudo por causa da Guida Vieira”, dizia minha tia estuporada.

De facto, ser século XX ou XXI, a alma humana, às vezes, é bem diminutiva.

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