O homem e o cão chegaram à ilha numa manhã de fevereiro. Vieram de barco e o primeiro a sair foi o cão, um rafeiro de tamanho médio e pelo comprido preto e branco. Depois, saiu o homem. Carregava uma mochila de lona gasta e vestia roupa velha, muito puída e suja devido à viagem. Quando ia descer para o cais, alguém na multidão gritou:
– Jesus!
O homem olhou na direção da voz, mas não identificou o autor. Por isso, esboçou um sorriso para ninguém e, finalmente, após três dias de mar, pôs os pés em terra firme e disse a primeira palavra, que passaria a ser o seu nome naquela terra. Palavra tinha desaparecido no meio da gente, a farejar o espaço em redor. O homem repetiu o chamamento, assobiou e o cão lá apareceu, alegre e rebelde. Isto, no entanto, gerou confusão na cabeça das pessoas e os dois – homem e cão – herdaram o mesmo nome: Palavra.
A vila era composta basicamente por uma rua no enfiamento do porto, ladeada de casebres e algumas casas sólidas, mas arruinadas. Ao fundo, em frente, erguia-se um edifício imponente, orlado de coqueiros: era a sede do governo da ilha. Aos lados, dois casarões dormiam o sono da ruína, um defronte para o outro.
O solar do lado esquerdo era a residência de uma senhora muito rica e meio louca, uma viscondessa a quem chamavam a Virgem. A casa do lado direito, apodrecida e desengonçada, era o Hotel da Vila, onde o homem se instalou num quarto do primeiro andar, com vista para o oceano.
O cão Palavra ficou hospedado na rua e todos os dias esperava o dono à porta do hotel e juntos empreendiam longas caminhadas. Atravessavam os palmares e os mangais e cruzavam a praia de lés a lés, indo até às extremidades da ilha, ou então seguiam para o interior através da mata e das plantações de cana-de-açúcar, passavam além das ruínas da missão espanhola, venciam o rio a nado e subiam ao Monte Verde, de onde avistavam a terra inteira e o mar infinito.
Às vezes, os garotos da vila iam atrás deles durante algum tempo, rindo e falando numa língua misteriosa, e os seus pequenos corpos esqueléticos brilhavam ao sol como peças desengonçadas de bronze e ébano. Depois, voltavam para trás a correr e a gritar:
– Palavra! Palavra! Palavra!
Volta e meia, o cão desistia do passeio e entregava-se aos miúdos e só voltava para o dono no dia seguinte, à porta do hotel.
O cão Palavra era muito dado a aventuras e à vida social. Abanava o rabo de forma sedutora para toda a gente e sabia brincar com as crianças e também era amigo dos outros cães, naturais da ilha, todos de pelo curto e amarelo, muito delgados e de focinho esguio.
O homem Palavra, pelo contrário, habitava o silêncio e as horas solitárias. O passo lento e o olhar contemplativo, a magreza do corpo e as roupas gastas, os longos cabelos negros e a barba hirsuta traziam à memória dos ilhéus a inquietante figura de um crucificado, mas também de um fora da lei a repisar culpas e arrependimentos numa ilha remota, e, por isso, começaram a contar mil coisas encantadas acerca dele.
Quando o homem se deslocava para o interior, diziam que andava à procura de ouro e isso era um sacrilégio, pois crónicas sem data contavam que o primeiro homem da ilha fora gerado numa fonte de ouro oculta numa gruta do Monte Verde. Por isso, era com grande alívio que o viam regressar daqueles passeios, às vezes ao cabo de dois ou três dias, com as mãos vazias, a roupa mais suja e o mesmo ar desolado de sempre.
Já quando se sentava debaixo de um coqueiro na praia e ali permanecia até ao anoitecer, falavam que estava à espera de alguém que lhe traria uma ordem de liberdade ou um mandado de captura e ele passava a ser um assassino perigoso e a sua tranquilidade era apenas uma manha para os iludir, mas também diziam que estava simplesmente à espera do amor, como toda a gente neste mundo.
Quando o homem ficava horas e horas no restaurante do hotel, ou na barraca da praça, a escrever num caderno – e ele fartava-se de escrever, escrevia sem fim – mudavam de ideias e diziam que era um escritor famoso em sofrimento, um artista em busca inspiração e de vida para contar.
Mas, afinal, quem era ele? E o cão, seria alguém?