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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

7/07/2023 08:00

O Kayros acabava de chegar naquele preciso momento da Antártida, aonde o tinha levado a investigação que andava a fazer sobre o seu bisavô, o mais novo de três irmãos que se perderam no mundo, cada um em parte incerta. Dos três, o bisavô do Kayros terá sido o que teve a vida mais fabulosa, tendo percorrido inúmeras terras de maravilha e pasmo, umas à face da Terra, outras certamente no interior dos sonhos.

- O gajo espalhou descendência por todo o lado e depois desapareceu - disse-me o Kayros, felicíssimo. - Ando há vários anos atrás dele. Quero descobrir o lugar onde morreu.

Eu fiquei maravilhado com aquilo! O propósito do Kayros era espantoso. Daquela vez, ele tinha seguido o rasto do bisavô até ao polo sul. Vejam só! Para mim, a vida e a alma do Kayros consubstanciavam o longe e a distância do meu próprio imaginário. Ele era o desconhecido perfeito, a única pessoa no mundo em quem eu podia confiar.

No entanto, ao longo destes vinte anos, só estivemos juntos em sete ocasiões (esta era a oitava), sempre em pontos diferentes do globo e por períodos muito curtos. Depois de Ushuaia, encontrámo-nos em Cabo Verde, no Tibete, em Espanha, na Austrália, em Portugal e no Taiti. Agora estávamos algures na África Austral.

- Sei que o velho esteve lá em baixo e dali foi para a Nova Zelândia - disse ele. - É para lá que vou agora.

O Kayros passa a vida em viagem e fala fluentemente várias línguas, entre as quais português. De certa forma, posso afirmar que ele anda a viajar desde que nasceu, em 11 de novembro de 1967, a bordo de um belo e elegante veleiro de três mastros chamado ‘Flor del Mar’, durante uma travessia entre Tenerife e Cuba.

A mãe era tunisina. Uma mulher lindíssima e enigmática, que surgiu do deserto como quem rasga um sonho e entra na realidade. Depois, no fim da vida, voltou para o deserto e morreu misteriosamente às portas de Douz. O pai, a quem pertencia o navio, sempre disse ser natural de parte incerta, mas, regra geral, apresentava-se com passaporte canadiano ou cipriota. Parece que tinha dupla nacionalidade.

Quando a mãe morreu, o pai escreveu um poema de amor e despedida na areia, que, segundo o Kayros, rezava assim:

Ela tem os cabelos negros como uma noite sem lua no fim do mundo e compridos como rajadas de vento na beira de um abismo e os olhos dela são azuis como o céu e o mar fundidos num dia de verão, azuis como o anil dos turbantes, azuis como tudo o que é azul no universo.

Ela tem sinais que descem do alto do nariz como cavalos selvagens vistos ao longe nas colinas do paraíso e se espalham pelo rosto até ao canto dos lábios e os lábios são carnudos e os dentes são delicados e o sorriso é alvo como um diamante sem sangue e sem dor.

O seu corpo tem a forma de um sonho perdido na cabeça de reis e piratas. Os seios túmidos evocam o esplendor das cortes antigas e o ventre contém a música inebriante dos oásis. As ancas são madrugadas serenas ainda por vir e as pernas alongam-se como colunas num templo sagrado. Os braços movem-se como os ramos de uma árvore jovem e livre e as mãos dizem-me agora adeus como estrelas cadentes no precipício do firmamento.

Eu, no entanto, sei que este poema é pura invenção, mas nunca lhe disse nada…

O Kayros é rico. Riquíssimo. Mas, mesmo que não o fosse, tudo seria assim. Basicamente, ele não tem medo de nada e por mais de uma vez visitou países em guerra e regiões afetadas por grandes calamidades, sob pretexto de escrever reportagens para revistas e jornais de segunda categoria, quando, na verdade, o seu objetivo é apenas sentir a vida e conhecer a Humanidade.

O Kayros é um homem raro, daqueles que andam como se voassem, estão a ver? Acho que já o disse uma vez, mas vou repetir. Ele é um tipo que está em toda a parte como se estivesse em parte nenhuma. É um gajo que dá a camisa com incomensurável generosidade, parecendo que no-la rouba como um cretino. É um indivíduo que vibra, resplandece, explode, mas não demora, não tarda, não fica. No fundo, é um homem que nunca acaba, porque age como a própria vida.

Felizmente, é meu amigo!

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