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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

3/01/2025 08:00

A meio da manhã, talvez ao cabo de duas horas sentado à secretária a fingir que estava a trabalhar, quando na verdade estivera apenas a imaginar que tinha morrido há tantos anos quantos os da sua existência, ele levantou-se e dirigiu-se para a porta de saída do escritório, sempre a pensar que estava morto e que Deus entrara no seu cadáver e a partir dali tinha iniciado a construção de um novo mundo, um mundo feito à sua medida, um mundo perfeito. Um colega fez-lhe sinal a perguntar se ia ao café, como quem diz se fores, eu vou contigo. Ele respondeu em voz alta que não, não vou. Vou só ali à casa de banho, disse ele, mas de facto saiu do edifício e foi pela rua acima e começou logo a transpirar, porque o tempo estava muito quente e abafado, o ar pesado, cheio de humidade.

Olhava esbugalhado para as pessoas, ainda a pensar que tinha morrido e que Deus estava agora dentro de si a criar um novo mundo e a certa altura sentiu um impulso descomunal para comunicar isso a toda a gente na rua, um impulso tremendo para dizer estou morto, minha senhora, estou morto, meu senhor, estou morto e Deus está a criar um novo mundo dentro de mim, mas optou por não o fazer, consciente de que iam tomá-lo por louco, e continuou a andar alagado em suor até que mais à frente, um pouco antes de chegar à praça, concluiu que a existência é uma questão de tempo e, por isso, o espírito acaba por se habituar a qualquer tipo de trauma. Sim, disse ele, a boa e sã existência é sempre uma questão de tempo.

Era uma praça clara, a mais bonita da cidade e a mais nobre também. Ele sentou-se num degrau do chafariz que havia no meio, mas não conseguiu ficar lá mais do que cinco minutos, porque lhe faltava a calma necessária para encarar a velocidade a que as pessoas cruzavam o espaço, passando pela praça mais bonita como se fugissem dela, como se, afinal, fosse a praça mais feia e perigosa da cidade. Então, dirigiu-se para leste e foi por uma rua velha e comprida, muito estreita, até um miradouro com vista para o porto, onde estavam atracados três navios de cruzeiro. No miradouro havia um pequeno café. Foi até lá e sentou-se na esplanada. Pediu uma imperial e um maço de tabaco. Tirou o telemóvel da algibeira e escreveu uma mensagem. Disse onde estava e pediu-lhe que fosse lá ter o mais depressa possível. Tenho uma coisa muito importante para te contar, escreveu, uma coisa grave. Assim mesmo. Estava disposto a contar-lhe tudo.

Agora estava calmo e olhava para o mar enquanto bebia a terceira imperial e fumava o décimo cigarro e já não pensava tanto em estar morto e ter Deus dentro do seu corpo a fazer um novo mundo, mas tão só na magia da vida e nas formas de contrariar a ordem natural das coisas, no terror, no medo, na irrealidade das situações. A vida leva os homens à morte e os homens levam a vida aonde for possível, pensava ele. E tudo é possível. Esta é a lógica das coisas.

É possível envolver-se com uma puta, por exemplo, é possível ter mulher e amante, é possível correr no meio da noite completamente nu, é possível matar alguém à machadada, é possível abandonar o emprego e fugir, é possível revelar fraquezas e traições, é possível gritar por tudo e por nada, ter e não ter medo, é possível ser livre, é possível ir preso para o resto da vida e o mar ali tão perto também naquela espera, o mar esquecido, o mar a respirar fora dele, o mar a percorrer a cidade, o mar para além do mar e ela vem rua acima a sorrir, mas era um sorriso fechado, perturbado, magoado como o corpo inteiro. Sentou-se ao pé dele, tensa, rígida. Cruzou as pernas e fixou-o já sem o sorriso, como se tivesse perdido um membro. Então, o que foi?, perguntou, ao que ele respondeu com imensa tristeza estou a olhar para o mar.

Sentia-se cada vez mais longe de ter morrido e de Deus estar a construir um novo mundo dentro da sua alma, um mundo feito à sua medida, um mundo perfeito, de modo que percebeu que nessa noite haveria de adormecer com facilidade, como um anjo, dormiria como um anjo, porque o dia de amanhã estava finalmente por vir. Pela primeira vez na sua vida, esse dia não existia. Até que enfim! Contudo, ainda pensou que seria muito bom se o tempo amanhã estivesse mais fresco...

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