O “Lápis azul” foi o símbolo da censura durante a ditadura do Estado Novo, por referência à cor do lápis que os censores usavam na sua actividade de eliminação ou expurgação de textos ou imagens inconvenientes para o regime e a sua propaganda oficial. É sempre bom recordar aos mais novos estes tempos tenebrosos da nossa história recente.
Após o 25 de Abril, o direito à liberdade de expressão ganhou foros de garantia constitucional e a sua compressão só pode ocorrer, em situações excepcionais, quando em conflito com outros direitos fundamentais com igual tutela normativa. Isto quer dizer que nos dias que correm há uma plena consagração e manifestação do direito à liberdade de expressão? Do ponto de vista formal a resposta afirmativa é inegável. Todavia, ao arrepio do que seria desejável, parece ter surgido em lugar da censura oficial uma espécie não menos nociva, embora menos aparente de censura, aquilo a que chamaria de autocensura induzida e que mais ou menos encapotadamente vai minando o direito à livre expressão de pensamento. De tal modo que entre a censura formal do lápis azul da ditadura e a autocensura induzida venha o diabo e escolha. Lateralmente, lembra-me sempre aquela velha anedota do jacaré que voava, mas rasteirinho. O que se pode entender então por autocensura induzida, usando uma forma pleonástica? É o acto de censurar o próprio pensamento ou a sua exteriorização ou manifestação discursiva, por regra, por razões temerosas ou de deferência ou adulação dos outros, sem que haja uma pressão directa ou visível de qualquer entidade ou instituição. Uma espécie de o medo guarda a vida, como soe dizer-se. A autocensura pode ocorrer em variadíssimos contextos e por inúmeras razões. Para satisfazer ou se adequar às expectativas do mercado, pode-se lançar mão da autocensura para não criar anticorpos ou reacções adversas do cliente.
Dou como exemplo um editor livreiro que opta pela venda de livros ou revistas cujo conteúdo seja inócuo ou inofensivo e que garanta maiores perspectivas de venda e lucro.
Para o cidadão comum, as razões de autocensura andarão ligadas ao temor reverencial que ainda se cultiva, à segurança no emprego nas mãos de um patrão musculado, pouco dado a posições e diálogos reivindicativos ou ao receio da perda de algum benefício ou vantagem que dependa da atitude discricionária ou revanchista de alguém que detenha alguma forma de poder e que de algum modo induz, embora não manifestamente, aquela atitude de autocensura.
Muitos destes acabam por recorrer ao anonimato das redes sociais para expressar o que lhes vai na alma, resvalando, por vezes, na irrazoabilidade do insulto e da irracionalidade.
A autocensura mais problemática é a dos meios de comunicação social que contende com a sua missão de informar cabal e livremente.
E se a parcialidade é uma nota comum aos chamados comentadores ou fazedores de opinião que enxameiam os jornais e as televisões, e daí não virá mal ao mundo, já o mesmo não se poderá dizer da autocensura nos critérios editoriais e de divulgação da informação pelos profissionais de carteira, cuja missão é informar desassombradamente.
Embora um cidadão atento cedo perceba as manigâncias e até possa condescender com as razões de amor ao pêlo que lhe subjazem, são, todavia, formas ardilosas de condicionar a liberdade de expressão e a transparência da informação. Que bom seria todos podermos dizer como Torga: “Livre não sou, que nem a própria vida mo consente. Mas a minha aguerrida teimosia é quebrar dia a dia um grilhão da corrente”.