MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

PALAVRAS APENAS

27/08/2024 08:00

O grito das árvores mudou-me as palavras previstas para este texto. Ia escrever sobre as levezas do verão e a beleza do mundo. Ia falar de férias e da bênção de as poder gozar. Mas não pude. O fogo doeu-me nas mãos, queimou-me a ligeireza da sintaxe e riscou-me tudo o que era azul e risos e calmaria. E escreveu lume, cinzas, fumo, angústia e tristeza. Escreveu desamparo e medo, mas também coragem e valentia.

Vi, de longe, o fogo a engolir a montanha e a pintar de rubro a renda dos picos, as gargantas misteriosas dos vales, os olhares ansiosos de quem tem a casa perto e a fazenda pronta. Vi, de longe, o medo de quem sente que o trabalho de uma vida, de várias vidas, pode desaparecer num instante. Vi, de longe, o instante. E o instante incendiou-me as palavras.

O grito vermelho da montanha faz-se ouvir no mundo inteiro, porque o mundo inteiro conhece o verde da ilha, conhece os poios plantados nos beirais dos abismos, conhece os abismos e a vertigem de se ser serra e mar.

Sim, é claro que eu sei que quem mora num lugar assim, com a natureza ao pé da porta, tem de contar com os seus humores, com a sua bipolaridade: ora bela, ora medonha, ora em sossego ora não. E também conheço a História desta relação de vizinhança. Mas, hoje, e mais uma vez, dói-me a dor da terra, dói-me, no corpo, o silêncio crepitante da montanha e falta-me o ar.

O que vamos deixar a quem vier depois de nós? Que herança? Que património? Como vamos falar de paraíso, de tranquilidade, de um pulmão no meio do Atlântico? Sobre o que vão escrever os poetas?

Gritam as árvores, a montanha e a terra. São minhas, caramba! São nossas. E a dor do que é nosso é nossa também.

Desculpem não ser a voz da alegria, desta vez. Mas posso ser a voz que agradece, porque, apesar da dor, temos tanto a agradecer. São homens e mulheres que não desistiram; são os bombeiros “que avançam quando todos fogem”; são que se esqueceram de si para proteger os outros; são os populares que velaram pelo que ficou, quando todos se foram embora; são os que deixaram as suas casas para acolher os que não sabem se terão as suas de volta, quando regressarem; são os estiveram perto (eu escrevo de longe), apesar de lhes doer também as dores das árvores, das montanhas e da terra.

O grito das árvores mudou-me o curso das palavras, mas, neste apesar que me dói tanto, sei que há (ainda) no fundo da terra um coração verde que teima em bater e que há (ainda) humanidade no coração dos homens. E, se ainda os consigo sentir, é porque houve coragem e valor. Afinal, ainda podemos ter esperança.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
18/12/2025 08:00

Há uma dor estranha, quase impossível de explicar, que nasce quando alguém que amamos continua aqui... mas, aos poucos, deixa de estar. Não há funerais,...

Ver todos os artigos

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Qual o valor que gastou ou tenciona gastar em prendas este Natal?

Enviar Resultados
RJM PODCASTS

Mais Lidas

Últimas