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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

17/09/2021 08:01

Vou todos os dias às zonas altas ver o que ainda sobra de mim no lugar onde vivi quase toda a minha vida e agora que as coisas chegam ao fim - um fim bem expresso na demência da última tia e na ruína dos prédios - fico a pensar no que me edificou e trouxe até aqui. Entre factos e memórias incutidas, entre o nítido e o confuso, entre o verdadeiro e o deliberadamente falso, de que me lembro ao certo agora? E que importância teve isso na minha formação?

Quando estavam todos vivos, eu inventei uma grande solidão só para me afirmar único e indivisível, e depois andei a viajar com ela pelo mundo inteiro, como bússola a orientar o meu caminho. Era real, mas também uma ficção, um véu transparente que eu usava para cobrir a nudez de poeta falhado e homem triste, querendo assim seduzir o século e empolar o romantismo dos meus passos e enganar a insipidez do meu quotidiano.

Hoje em dia, do lado onde vivi, estão quase todos mortos - o pai, a mãe, as tias mais queridas, a prima, o tio, os avós, todos os que enchiam o espaço com a sua presença e a dos seus convidados - e o grande guia da solidão já não serve para nada, a não ser para indicar o percurso até ao meu território, lá em cima, entre a Rampa e uma curva apertada da Comandante Camacho de Freitas, onde mil sonhos e mil medos fizeram de mim Duarte Caires, mil descobertas e mil desilusões também, mil amores e mil ódios, mil coisas viradas para a frente e outras mil viradas ao contrário, porque o meu nome também é Etraud Seriac.

Eu olho para dentro e pergunto-me: O que tens a dizer sobre isto? Agora, que tudo chega ao fim, ainda que o fim seja sempre a melhor forma de recomeçar, o que tens a dizer sobre o passado? O que tens para contar?

A minha irmã, por exemplo, insiste em dar vida à nossa casa, mas eu cá ando perdido, embora às vezes me encontre em fragmentos que reluzem nos escombros e nos olhos de velha louca da minha tia. Que parte de mim arde nessa luz? Quem sou eu nesta história? E para que serve esta demanda? Diz-me: Para que servem estas palavras? Para que serve esta escrita?

Neste ponto, faço minhas as palavras de Montaigne, quando se dirige ao leitor para lhe apresentar a sua obra ‘Ensaios’: "O tema do meu livro sou eu próprio; não há razão para que gastes o teu tempo com um assunto tão frívolo e inútil."

Devo também dizer, já agora, que nunca ganhei um tostão com os meus escritos - descontando os textos jornalísticos, claro, mas isso são contas de outro rosário -, pelo que, de facto, devem mesmo ser frívolos e inúteis.

Eu bem sei que, às vezes, é necessário ser estrangeiro para se compreender o país natal e também é preciso ser tantas vezes marciano para aceitar a fabulosa existência de vida na Terra. Por outro lado, sei que não é possível deixar de viver hoje só porque podemos morrer amanhã, mas, ainda assim, continuo sem resposta para o meu mundo das zonas altas à beira do abismo.

De facto, tudo se perdeu, a começar pelo sabor dos alimentos: os iogurtes feitos em casa por minha mãe; as papas de milho com açúcar e os casquinhos deliciosos rapados do fundo da panela de ferro; as lascas de bacalhau assadas na boca do fogão, na chama azul, regadas depois com azeite, uma pontinha de pimenta à mistura; o pão com manteiga e o café de cevada com leite; as omeletes com montes de salsa; as saladas de tomate e cebola às rodelas temperadas com vinagre de vinho de uma garrafa sempre cheia de mosquitos mortos; o atum cozido aos cubos com semilhas; os ovos mexidos com chouriço; a fruta colhida das árvores na fazenda do meu avô, pêssegos, damascos, peros, castanhas, figos, ameixas de tantas variedades, laranjas, marmelos, e havia também cana-de-açúcar e banana, uvas, amoras silvestres, e foi por isso que passei a infância toda com um canivete no bolso.

Enfim, o resto fica para os próximos capítulos, porque este já vai longo, frívolo e inútil de mais.

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