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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

23/07/2021 08:02

Nunca esqueci isto. Um dia alguém me disse - ou talvez tenha sido eu a dizê-lo a alguém, já não me lembro ao certo - que em política partidária só é possível dar dois passos: um é para entrar nesse universo de ilusionismo e o seguinte só pode ser para fugir de lá a correr ou então para se sujar definitivamente, sendo isto o que acontece com mais frequência.

- O segundo passo é determinante - alertaram-me, ou alertei eu. - Se fores em frente, ficas atolado para sempre. Vives a dizer uma coisa e morres a fazer outra. Isto é a coisa mais triste que pode acontecer a uma pessoa.

- O melhor é não se meter no assunto - retorqui, ou retorquiu o outro, já não me lembro bem. - Mesmo indo com patinhas de lã, não te salvarás.

Esta conversa ocorreu algures na década de 80, quando eu ainda não tinha sequer 20 anos - talvez apenas 17 ou 18 - e era, por isso, imortal, belo e romântico em todos os aspetos da vida, todos mesmo, da incerteza dos amores ao desejo absoluto de revoluções sociais e artísticas, da firmeza do quotidiano ao sonho de aventuras sem fim, da observação do ser humano à destreza na avaliação da sua alma, e por aí adiante, sendo que muitas vezes era mais rápido do que a minha sombra a sacar a arma, coisa que, como se sabe, apesar dos vários benefícios que nos proporciona, é também uma característica basilar da estupidez. Quem dispara com tamanha agilidade, normalmente dispara contra si mesmo.

Registo aqui duas grandes intervenções que espelham o meu pensamento e prática sobre o assunto. Foram intervenções de cariz anarquista, digamos assim, e datam daquela época de juventude e imortalidade, tão querida e longínqua, quando se fazia tudo sem ter medo de nada e, ainda por cima, julgávamos ser livres.

Eu fui com uns amigos ali para os lados do Santo da Serra e depois viemos por Machico e pelo caminho tomei um grande ‘bedeirão’, ou, para ser ainda mais madeirense, uma ‘mamada’ do caraças, daquelas à maneira. Deixaram-me ao pé da Sé, para ir à minha vida, e havia lá na rua uns cartazes de propaganda, porque era período de campanha eleitoral. Os cartazes apresentavam a cara dos candidatos, tal como hoje em dia, e eu aproximei-me de um bem conhecido na altura, saquei do bolso uma caneta de feltro preta e, bamboleante, sorriso de canto a canto, pus-me a desenhar um par de cornos na testa do homem, uns bigodes retorcidos e um balão de fala, no qual escrevi: Eu sou o Diabo!

Já era noite, mas havia ainda gente na rua. Algumas pessoas passaram por mim como se eu não estivesse lá. Outras pararam e ficaram a ver a minha atuação, exatamente como se eu estivesse a discursar, a dizer assim: Se ganhar as eleições vou fazer isto e aquilo e aqueloutro, casa para toda a gente, salários para o dobro, trabalho para metade, férias para o triplo. Mas não convenci a assistência. As pessoas foram-se embora a pensar que os políticos são todos iguais, não há volta a dar, é tudo farinha do mesmo saco.

Outra vez, eu e um colega de escola saímos à noite, munidos com um frasco de spray vermelho, com vista a escrever nas paredes da cidade umas quantas mensagens contra o sistema político, contra o governo e contra a oposição, contra a ordem estabelecida na região, no país e no mundo inteiro, contra tudo e mais alguma coisa, escrever umas verdades e abalar consciências, sobretudo a consciência dos ricos e dos poderosos, dos finos e dos snobes, dos cabrões e dos hipócritas. Mas a coisa não deu certo. Não tínhamos prática. O spray não funcionava como queríamos e nós andávamos em constante sobressalto. Tudo o que conseguimos escrever foi "Morte aos queques", numa parede vazia em frente a uma pastelaria. E já foi uma coisa boa, para provocar os meninos cheios de manias e não me toques, que de facto são como todos os outros e também compram ganzas aos bandidos na zona velha.

No dia seguinte, um colega que estava a par da nossa intervenção veio ter connosco e disse:

- Aquilo é uma boca para a pastelaria, não é?

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