De certeza que não seria este casal deste lado.

Não faz falta nascer mulher nos anos 60 do século passado. A mulher fica em casa a ajudar a mãe nas voltas; fica por ali a dar um ponto no bordado pelo terreiro; fica a pregar uma marca na camisa! Pouco mais! De que vale nascer mulher nos anos 60? Só com sorte e, se for jeitosa de mãos, vai aprender costura e ainda ganha umas patacas para o dote. Mas é preciso comprar a máquina Singer. Um dinheirão! Isso é só para aquelas que conseguem arranjar um noivo rico, embarcado na Venezuela. E mesmo assim é preciso mandar retratos daqui para lá de frente e de lado, de meio corpo e de corpo inteiro para ver se ele aprova e só então casar, talvez por procuração. Só assim! De resto, nada!

O bom mesmo é nascer homem. Isso sim! Se for bom de cabeça para a escola, pode dar a 4ª classe e ir trabalhar logo para a venda como vendeiro com o lápis atrás da orelha ou quem sabe numa loja de fazendas no Funchal, ao balcão, a servir as clientes, todo pipi de gravata e tudo, as mãos de unhas frescas de menino fino, talvez nas Casimiras ou no Bazar do Povo ou na Casa das Roupas Feitas, na 31 de Janeiro. Isso é um luxo! À tardinha, pode armar-se em homem, pegar num cigarro e ir passear ao Jardim Municipal, ver as gaivotas ao cais da cidade nos seus voos rasos de asas ao vento e dar-se ares de importante. E se tirar carta de chofer e tiver um carro na praça, isso será a sorte grande! Pior é a guerra do ultramar que pode caçá-lo! Mas assentar praça, ele tem que assentar! Isso é para todos! Depois, vai-se ver se o padrinho o livra com o "Sustento e amparo de mãe".

Se não der para a escola, lá vai ele ajudar o pai na fazenda, plantar e arrancar semilhas, tratar da vinha e do corredor, regar a fazenda à noite nos dias de água de giro, consertar o soalho e os tapa-sóis! Tem é de procurar trabalho por aí seja lá onde for. Pode até arranjar uma arte para ganhar a vida, ser carpinteiro ou serralheiro! O que faz falta é pôr o pão na mesa!

Portanto, um menino, sim! Uma menina é assim uma espécie de flor! Com sorte, bela, mais nada!

Vai daí, quando menos se esperava, o homem deste lado noticiou "minha mulher está de menino"!

E no fim do Verão, chegou mais uma menina! "Credo! Seja tudo pelo amor de Deus! Bem podia ser um rapaz!" - diziam todos. Todos, não! Ele, o pai, à beirinha dos quarenta, estava derretido! E tinha ideias novas! O tempo vai correr. Veremos! E o mundo correu e deu algumas voltas e veio o 25 de Abril. Liberdade pela rua! Muitas lutas! Muitas conquistas! Graças aos homens e às mulheres de boa vontade, o mundo continuou redondo, sim, mas ligeiramente diferente! Confiança, em casa!

Ele, moderno de coração, alterou com regras a ordem do jogo! Batia palmas à chegada dela, que era de fibra rija! Dizia-lhe palavras de força e de ternura! Estuda! "Tens de estar treinada para viveres sozinha! Não dependas de ninguém!" E quando ela se mostrava insegura, afinal, era mulher, ele dizia "Joga os nervos para aí e segue forte". Estuda para poderes comprar o teu lenço de mão! Estuda para vingares na vida! Estuda para saberes! Estuda para não seres enganada! Não é preciso festejar "São Valentins"! Não é preciso festejar "Dias da Mulher"! Passas bem sem essas baboseiras! És mulher e tens cabeça para pensar! Não te percas no meio de coisas tontas! Não valem a pena! Se for preciso, volta atrás! Não há vergonha em nada disso! Feio é roubar!

Um dia, ela apontou-lhe o dedo a dizer "O pai devia me ter mandado tirar carta de condução aos 18 anos!" Ele respondeu sem qualquer remorso "Não tenho nada com isso! Se fosses homem, era igual! Isso é para o desenrasque da tua vida! É lá contigo!" Ela calou-se! Igualdade! Liberdade!

O que ele nunca lhe ensinou claramente e ela nunca soube entender bem foram os meandros do coração!