Anos 80 do século passado. “Ai meu Deus, que já vão sendo horas de eu pegar n` Os Maias de Eça de Queirós e começar a ler” – digo eu, com remorsos por não ter ainda cumprido com o meu dever. “Mas tu já fizeste tanta coisa, pequena, dá-te por satisfeita” – conversa da senhora Maria José de Umbelina, que me conta tanta história e tanto me faz esmorecer na sua casinha tão limpa de soalho brilhando ao sol como um espelho. Pois é! De verdade, eu já pus as camas de lã de ovelha a apanhar sol, já mondei e sachei a terra cheia de flores à roda da casa; já pus roupas a arejar, já forrei os livros da escola para o ano que aí vem e, paranoia maior, já varri milhões de vezes o terreiro calcetado de pedra lascada e as passadas, tudo por ali abaixo até à vereda, que também é varrida. Tudo avoando de fresco! Também já fiz naperões de croché sem fim para minha mãe fazer um presente aos embarcados que vêm de férias da Venezuela para casa do tio João e para a tia Maria José da Austrália, que, coitada, como é mais chegada a minha mãe, e nada leva a mal, vai receber um naperão meio em chapéu, que, Deus me perdoe, não sei como foi que eu me enganei naquilo e não tive gana nenhuma de o desmanchar. O remédio é engomar e puxar daqui e dali e vai ficar bom. Trabalho para as tardes de domingo de minha mãe.
Enfim... Depois de passar de hoje para amanhã e de amanhã para depois, lá enceto a leitura daquele calhamaço d`Os Maias, graças a Deus nas calmas, porque as tardes são grandes e tem de haver vagares para tudo neste mundo. Mas não sei se sei ler nas entrelinhas, talvez só dou conta daquilo que quero ver e perceber à vista desarmada, por assim dizer, e emociono-me e até choro. Afinal, n`Os Maias, aquela gente tão fina, tão bem-comportada, tão sabedora do bem e do mal, tão instruída, tinha de ter um desgosto daqueles? Então, no fim, não era melhor se descobrir que Maria não era irmã de Carlos e ambos podiam viver felizes e contentes na paz do Senhor? Com tantas mulheres no mundo, Carlos da Maia tinha logo de se apaixonar pela figura da irmã, supostamente casada, e manter um relacionamento com ela, às escondidas do avô, homem à antiga, que verdadeiramente amava o neto e que o educou para ser um homem íntegro? Mas tinha de ser assim, porque o destino é que prega partidas e uma pessoa não aguenta e tem de fazer tontices! Que indecente! E mais, depois de saber que aquela bela senhora tão fina era do seu sangue, sua parente tão próxima, nascida do mesmo ventre, Carlos da Maia visita-a com a boa intenção de lhe contar comprovadamente tudo e depois continuar com a sua vida para a frente, definitivamente separado dela. Assim é que seria! Mas, na verdade, acaba na cama com a irmã, na qualidade de amante! Que nojo! Depois diz-se que a sorte é que é madrasta e põe casquinhas de banana no nosso caminho.
Tenho muito que aprender! Leio o livro, sim senhor, copio frases lindas para o meu caderninho, choro que me farto com aquela triste vida dos protagonistas. Só não tenho ninguém que me abra os olhos e me mostre que aquilo tudo é uma crítica à sociedade portuguesa que sabe o que tem de ser feito, mas não faz, deixa passar, porque permite que o coração fale mais alto do que a razão. Somos uns românticos.
Chega outubro num ápice e lá vai a malta para a escola FF, com os livros debaixo do braço. O Senhor Padre Velosa é o professor de Português e entende de comparar a sociedade oitocentista d`Os Maias com a nossa dos anos oitenta. É um “Deus nos acuda”, com a malta a contrariar e o Senhor Padre Velosa a esbracejar e a declarar que Eça de Queiroz devia era ter nascido no século XX, que muito teria que escrever. Como faz falta ler os livros e aprender por si! Como faz falta um professor para ensinar!