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Artigo de Opinião

2/01/2020 08:00

Sabemos o seu número na coleção, quantas páginas terá, conhecemos-lhe até as prequelas, a história antes do início, passe a contradição. Ainda não tem título, mas encerra em si o potencial de um Nobel, de um Pulitzer, de guião de Óscar, de um bestseller. Pode ser uma epopeia plena de viagens e aventuras, obra de referência ou almanaque de curiosidades, pode ser fantástico, aterrorizante ou simplesmente brilhante, pode ser uma peça histórica marcante ou irrelevante, pode ser prosa ou poesia.

Certamente será rico na diversidade de notas pessoais, porque estes anuários da humanidade têm sempre espaço nas margens e rodapés para as notas dos 7,8 mil milhões que já éramos em meados de 2020.

O ano que agora terminou foi tão aziago para tanta gente, que nos interrogamos se, tal como na lenda, Pandora não terá aberto de novo a caixa de todos os males do Mundo. Na lenda, no fundo da caixa aberta ficou apenas a Esperança (interrogo-me sempre sobre as razões da Esperança estar fechada nessa caixa). Esse é também esse um dos sentimentos mais referidos nesta transição de ano. Por isso, quando comecei a escrever estas linhas, nos últimos dias de 2020, tinha a certeza de que o verde, associado à esperança, seria a cor dominante da capa do livro de 2021.

No entanto, na região, a última semana do ano que acaba, influenciou de tal forma o que começa que o verde se tornou um pouco mais escuro e manchado.

Começou a escurecer, na noite e dia de Natal. A costa Norte da Madeira foi fustigada por chuvas intensas, quando a maioria das terras já estavam no limite de saturação de água. Como consequência assistimos a enxurradas com consequências graves e imediatas para as populações, principalmente na Boaventura e Ponta Delgada. Aos prejuízos visíveis e imediatos, teremos ainda de somar as perdas agrícolas ainda não contabilizadas e os custos da perda de confiança das pessoas, que certamente contribuirão para o abandono de uma zona já de si desertificada.

Neste tipo de catástrofes, é fácil cair na tentação de querer distribuir culpas, como se isso resolvesse alguma coisa. Se o aviso fosse vermelho em vez de amarelo ou laranja teria acontecido algo de diferente? Estou convencido de que não. Mesmo com um aviso prévio de mais 24 ou 48 horas, não haveria tempo para limpar e reabilitar cursos de água, consolidar escarpas, remover depósitos de entulho ou evacuar as casas no caminho da água. Quem ali vive conhece bem (e nalguns casos alertou) para alguns dos perigos, mas na falta de alternativas, vive na esperança de que a desgraça iminente não seja para breve.

Mas ainda que seja impossível evitar o que já aconteceu é sempre importante aprender com os erros. É impossível mudar tudo, mas é importante que nas limpezas e reconstrução esteja presente uma ideia de gestão do território integrado na Natureza. Não tenhamos dúvidas, com ou sem avisos vermelhos voltará a chover, voltará a haver derrocadas, enxurradas e quebradas. Temos de nos prevenir contra os efeitos mais nefastos, através dessa melhor gestão do território.

Finalmente as manchas, em forma de salpicos de sangue que continuam a escorrer de ano para ano.

No penúltimo dia do ano, mais uma mulher foi barbaramente assassinada à mão de quem lhe terá jurado amor eterno. Aos 42 anos, uma mãe de duas crianças foi assassinada, premeditadamente, com duas dezenas de facadas pelo pai dos seus filhos. Não há desculpas. Não se pode continuar a desculpabilizar agressores e a culpabilizar as vítimas. Esta mulher teve a coragem de querer sair de uma relação abusiva, de querer escolher a sua vida, o seu direito à sua autodeterminação. Viu a Justiça, o Estado, reconhecer-lhe esse direito. Mas não teve do mesmo Estado a garantia de proteção necessária para o poder exercer.

Com tantos casos, incluindo na região, tanta investigação sobre os mecanismos da violência doméstica, com toda a legislação já publicada, quantas pessoas (na sua grande maioria mulheres e raparigas) terão ainda de morrer para que a Justiça e o Estado ponham os seus meios ao serviço das vítimas?

Neste livro, cuja segunda página inauguramos hoje, precisamos de riscar estas histórias antes de serem escritas, porque para a primeira já vamos tarde: uma das primeiras notícias de 2021 é a agressão a uma mulher na baixa do Funchal pelo seu companheiro.

Precisamos de garantir, desde já, que a capa do próximo livro venha sem manchas.

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