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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

28/04/2024 07:45

Sorria sempre, de riso aberto e com os dentes que tinha. Até enervava, que a bem dizer nem sempre era caso para isso. Um dia, as cuecas vieram parar aos joelhos, não por alguma razão de atentado ao pudor ou de alguma devassa do privado, mas porque o elástico estava lasso e a vida não permitia umas novas, nem havia tempo para corrigir a frouxidão do tecido gasto. “Ficou alcançada”, puxou as ditas como pôde e seguiu em frente. Logo ela, que tinha tanto em boa disposição como em timidez.

Apetecia-lhe chorar, mas ergueu a cabeça e esboçou o sorriso que tinha à mão, com os dentes que conseguia. Já não eram muitos, que depois de se ter a canalha os dentes tendem a enfraquecer. Era o que lhe diziam as mulheres mais velhas da aldeia. Outra vez, foi o período que apareceu sem aviso e num fluxo mais veloz que o da ribeira brava depois de uma chuvada. Não estava em casa, nem no meio da terra, não estava preparada, até que alguém lhe chamou a atenção para as pernas ensanguentadas, como um terreiro depois da matança do porco. Não se falava dessas coisas em público e até a pobreza era para se viver envergonhada e em privado.

Seguia sempre em frente e ria de gargalhada aberta em ambiente de conforto, sorriso tímido, com os dentes todos (os que tinha) quando estava menos à vontade. Irritava aquela alegria que até parecia coisa de artista que sabe que o show da vida tem de continuar. Mas continuar para onde? Todos os caminhos são bons quando não se sabe para onde ir. E às vezes aquela gargalhada sempre pronta, simples e quase tonta parecia de quem não faz ideia do caminho a seguir. Mas rir de quê, se a vida parecia tão triste? Até nisso, enganava. Sabia bem aonde queria chegar e guiava-se pelo sorriso, com os dentes que iam sobrando na boca, à medida que os anos passavam.

Raramente ter-se-á lamentado da triste sina. Do homem que teimosamente escolheu e que nem sempre terá estado à altura dessa preferência. Sorria para afugentar os maus augúrios e a pouca sorte. Sem lamentos e sem arrependimentos. Com os dentes que sobravam e a perspetiva no sítio certo: Que os pequenos pudessem ter vida melhor, cuecas que não escorregassem pelo elástico lasso e escancarassem pobreza, que se escondia como podia, pelas pernas abaixo até aos joelhos.

Um dia conseguiu finalmente pagar a prótese e recuperar os dentes que nunca lhe tiraram riso aberto e sorriso sincero, mesmo quando parecia não haver razões para tal. A canalha já estava encaminhada e, finalmente, o caminho parecia ter opções nas suas encruzilhadas. Mas já não tinha como escolher. Aguentou todas as dores da alma, mas foram as do corpo que a traíram. Queria sorrir, até já tinha os dentes todos, mas já não tinha forças sequer para disfarçar a tristeza e a dor que a acompanharam sempre, mesmo quando sorria e ria. E quem diria que até os dentes todos na boca podiam incomodar.

O livro “Contos Insularados” está à venda na livraria Clip de Aguarela, em Santa Cruz, e no site da Tomba Livros da Editora D’ideias (Contos Insularados (editoradideias.pt).

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