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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

18/08/2023 08:00

Há 15 anos, num abrir e fechar de olhos, achei-me na parte de baixo do mundo, virado para o Índico e para as constelações do sul. Ainda agora eu tinha uma ‘vida social’ - expressão fina para designar borgas com amigos - relativamente intensa e de um dia para o outro passei a ser um desconhecido em terra desconhecida entre desconhecidos.

Como se isso não bastasse, o feitiço de África apanhou-me sem tempo de reação e tomou logo conta de mim, enredou-me, pôs-me o braço negro à volta do pescoço e levou-me para uma dança ao som de batuques no meio do mato, fez tranças no meu coração, adornou a minha alma com missangas, vestiu-me as emoções com capulanas coloridas e esculpiu os meus pensamentos como se fossem varas de pau-preto.

- Quem sou eu e o que faço aqui?

A pergunta assaltava-me todos os dias ao acordar.

Ainda há pouco eu tinha organizado jantares e encontros de despedida na minha terra, pois ia embarcar para longe e haveria de ficar fora pelo menos doze meses, tempo mais do que suficiente para a saudade me esmagar. Alguns foram convívios intimistas, com dois ou três amigos, outros foram bastante festivos, com mais de 20 pessoas. No fim, de uma maneira ou de outra, eu regressava a casa emocionado, quase a chorar, às vezes mesmo a chorar, muito sensibilizado com a estima e o afeto que manifestavam por mim e agora, subitamente, estava sentado na beira da cama, algures no hemisfério sul, a coçar na cabeça e a perguntar:

- Quem sou eu e o que faço aqui?

Dizer que era voluntário e dava aulas de Português numa missão na Alta Zambézia parecia-me uma resposta incompleta, deveras insuficiente, mesmo assumindo e dissecando as motivações basilares que me empurraram para lá - o desgosto de amor, o desemprego, o sentimento de fracasso, o desejo de aventura. Era óbvio que devia haver mais substância escondida na minha condição, na minha viagem, na minha solidão, pensava eu. Tinha de haver mais substância. Eu queria que houvesse mais substância.

O desafio consistia em descobrir o quê. De resto, o desafio consiste sempre em descobrir o quê - esse ‘quê’ oculto que tanto nos atormenta e pode até ser nada. Sim, meus amigos, este é o desafio que gratifica a vida e a sua ausência no nosso percurso significa pobreza de espírito e outas coisas bem piores…

Todos os dias eu procurava respostas, todos os dias encontrava sinais.

Uma vez, por exemplo, ia a caminho da missão e começou a chover, pelo que me dirigi a um mercadinho miserável à beira da estrada de terra batida, cheia de lameiro, para comprar um guarda-chuva.

- Quanto custa um guarda-chuva? - Perguntei.

Estavam dois indivíduos na banca e um disse que custava 70 meticais e depois mostrou-me dois modelos, ambos esgrouviados. Escolhi o que me pareceu melhor e mais discreto. Assim que paguei, os dois lojistas começaram a rir, trocaram umas palavras em lomwé, olharam para mim com ar de gozo e deram um aperto de mão. Ou seja, fui enganado. Paguei dois euros por um produto que não devia valer sequer 50 cêntimos ou que, se calhar, fora roubado.

Nisto, apareceu-me pela frente um indivíduo todo esfarrapado e entabulou conversa comigo, mais ou menos assim:

- Tenho fome, mas hoje conto com o seu apoio para resolver este problema. Também fico muito contente por ter comprado um guarda-chuva. Na verdade, estamos na época das chuvas, mas o mais importante é que, com essa compra, o senhor está a contribuir para o desenvolvimento da economia local. E, se me matar a fome hoje, estará também a contribuir para o desenvolvimento humano desta maravilhosa terra.

Ao correr do tempo, tornei-me amigo deste rapaz, que era de facto inteligente e bem-falante, mas desgraçado e louco, e também dos dois comerciantes que se riram de mim. Volta e meia, comprava coisas a uns e matava a fome ao outro, de modo que ainda hoje me lembro deles, sobretudo quando por cá me fazem perguntas sobre a vida em África, às quais eu nunca sei responder com clareza. Afinal, é como se me perguntassem:

- Quem és tu e o que fazes aqui?

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