O tempo vai tomar conta de todas as recordações, como a erva daninha toma conta dos caminhos sem uso, e a ruína vai esmagar a obra e os feitos grandiosos no abismo do futuro. O que sobrar desta construção do vazio será apenas um segredo sem valor, um enigma patético, uma luz fraca e descabida iluminando uma porta no fundo de um corredor por onde já não passa ninguém, nem um só fantasma, nem uma única sombra, e, então, o senhor do lugar aperceber-se-á, horrorizado, que já não conhece o caminho que conduz à sua própria alma.
Às vezes, penso que este é o meu destino - perder-me de mim.
Outras vezes, porém, acordo convencido de que, afinal, este é o destino de toda a humanidade - perder-se em si.
Olho em redor e digo:
- Tudo o que se faz será sempre pouco aos olhos dos outros.
Depois, só para me enganar e iludir, acrescento:
- Por mais que se ame e seja amado, ou por mais que se morra e mate por amor, estaremos sempre sozinhos.
Quem diz o contrário é genuinamente feliz ou então muito estúpido.
Em qual apostam?
Eu cá jogo tantas vezes no Diabo, porque ele ajuda a quebrar a solidão e dá brilho aos nossos atos e fornece fogo de boa qualidade para exaltar as nossas paixões com luxúria, nudez e pecado. De resto, já ouvi dizer (tudo o que eu sei, meus amigos, foi de ter ouvido dizer e deve ser por isso que repito amiúde a mesma coisa) que anjos e demónios são iguais e também vejo que é habitual o Diabo andar por aí todo esfarrapado como um sem-abrigo, ao passo que Deus vai sempre muito bem aperaltado, com vestuário e acessórios de marca, daquelas marcas que custam milhares e milhões de euros, super-fútil e snobe. A farsa é tão perfeita e a cumplicidade entre ambos tão grande que qualquer pessoa troca, sem querer, as veredas agrestes do Bem pelas estradas asfaltadas do Mal, pensando que está a fazer exatamente o contrário.
Agora, suspiro e digo:?
- Maldita crónica!
Este é um daqueles textos em que as palavras fazem gato-sapato de mim.
Puta que as pariu!
Escrever também é isto - abrir o coração, procurar e não encontrar nada.
Eu queria dizer uma coisa, mas as palavras dizem outra.
São selvagens, diabólicas.
Não as consigo domesticar, nem amansar.
Quando comecei a escrever, tinha em mente algo concreto para contar, uma história qualquer, talvez sobre o Laranjal da minha infância, talvez sobre os mortos da minha família, talvez sobre o último livro que encontrei por acaso numa livraria, embora a expressão "por acaso" aqui se destine apenas a realçar o facto de nunca antes ter ouvido falar do último livro que encontrei, coisa que não é de estranhar, pois os livros encontram-se sempre "por acaso" e, mesmo assim, nenhum será nunca o livro da nossa vida.
Já agora - só para reforçar -, estou convencido de que os livros, tal como a maioria das coisas na vida, incluindo as emoções, existem precisamente para serem encontrados "por acaso" e, a meu ver, esse é mesmo o destino de qualquer livro ou coisa ou emoção que se preze. Indo mais longe, posso até afirmar, sem medo nenhum de me afogar no que digo, que a alma dos livros e das coisas e das emoções é o "por acaso".
O resto é comércio, mercantilismo, capitalismo e afins…
Dinheirinho, meus amigos, dinheirinho!
- Puta que o pariu.
Maldita crónica! Maldita mesmo!
A próxima será melhor. Prometo.