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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

27/01/2023 08:00

Antes, porém, não era assim. Antes, quando eu andava na casa dos 20 anos, era hipocondríaco e, como tal, contraí todas as doenças de A a Z. Não escapou nenhuma, incluindo as mais raras. Fartei-me de ir ao médico, fartei-me de fazer análises e exames, mas nunca se detetou nada, a não ser a tensão arterial alta no momento da consulta.

Da última vez, por exemplo, era vinte.

Eu expliquei a situação, a síndrome da bata branca, mas a médica não ficou lá muito convencida e perguntou-me:

- Tem algum trauma de infância com médicos?

Eu disse que não e depois clarifiquei:

- A vida é uma armadilha, doutora, apanha-nos sempre pelo ponto mais fraco. No meu caso, é o medo das doenças.

Levei muito tempo a vencer a hipocondria, mas esta ainda persiste oculta em mim, tal como a tentação do álcool habita em segredo no espírito do alcoólico recuperado. É por isso que a tensão aumenta à vista do médico. E não só, lembrei-me entretanto. Também acontece quando sou abordado pela polícia, por exemplo numa operação stop. Fico logo alcançado, as mãos a tremer na procura dos documentos, a voz embargada.

- Deve ser trauma de infância - insistiu a médica. - É o que faz dizer à criança que vem um polícia buscá-la se se portar mal…

Fiquei a pensar no assunto, mas acho que não. A minha mãe não me ameaçava desse modo, ela era mais de utilizar um vime contra as pernas. Quanto muito, trata-se de uma herança genética. Já a minha tia Alice contava que, em miúda, tinha medo que se pelava da polícia, ao ponto de fugir da fazenda do seu pai quando avistava um agente na estrada, não fosse ele suspeitar que estava lá a roubar fruta e hortaliça.

Seja como for, é tarde demais para procurar explicações e confirmações, pois todos os que me criaram e cuidaram de mim já morreram. Resta a memória e a perplexidade da existência. Sim, a perplexidade da existência. Quem são estes que aqui estão agora? Quem é esta gente que me cerca? De quem são estes olhos que me olham, estes olhos que eu também olho? De quem são estes corpos? De quem são estas almas? O que pensam? O que sentem? Como vivem e de que forma se vão extinguir?

Às vezes sinto que tudo o que me rodeia é apenas o espelho da minha solidão, mesmo quando falo, ou escrevo, ou vou na rua de braço dado. O sentido da vida morre-me a cada passo, a cada letra, a cada palavra do que digo, a cada letra do que escrevo, a cada metro do espaço que percorro.

Isto, contudo, meus amigos, é apenas um texto e o texto, tal como a vida, é uma armadilha, um engodo, independentemente do género, seja crónica, artigo de opinião, arte, poesia, pura ficção, assim-assim, ou simples relato de factos, porventura o mais perigoso, o isco mais sedutor, o que melhor nos engana e esgana. Ou seja, qualquer texto, mesmo quando revela sem pudor a essência do autor e das coisas, destina-se tão-só a apanhar o leitor e este é sempre apanhado pelo seu lado fraco, que é o lado que melhor define um ser humano.

A reação do leitor ao que leu, seja ela qual for, do silêncio à indiferença, do fascínio ao asco, da revolta à submissão e por aí adiante, doce, ácida ou salgada, diz tudo sobre a pessoa que é, a sua verdadeira natureza.

Já o autor diz apenas uma coisa:

- Cuidado! A vida é uma armadilha!

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