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Artigo de Opinião

6/03/2021 08:01

De estatura um pouco acima da média, exibia uma silhueta bem torneada, na compostura sóbria que os bons costumes impunham. Na imagem sobressaia a farta cabeleira escura que usava apanhada no cocuruto, os olhos de um negro líquido e o seu sorriso largo, de lábios carnudos e dentes de um branco imaculado. Maria casaria nesse ano com um moço bonito e trabalhador a quem serviu durante quarenta anos com as lides da casa e os cuidados a três filhos que amava incondicionalmente. Aos 60 anos o companheiro de vida partiu vítima de um ataque de coração e Maria, já avó, foi viver com o filho mais velho, dispondo da casa e do dinheiro que o marido deixara, o que desafogou os empréstimos bancários dos filhos. Maria ajudava nas compras do mês com a sua pensão e viviam em paz, embora o neto, com quem partilhava o quarto de dormir, achasse que já só dizia tontices antiquadas. Quis a sorte que Maria, quando já contava 80 anos, caísse nas escadas do prédio vendo-se relegada a uma cadeira de rodas. Em discussão acalorada, o filho e a mulher ponderavam o que fazer com Maria no regresso do hospital, sendo que não havia condições para cuidar dela e o quarto devoluto dava jeito às necessidades do filho. A conselho de uns entendidos, concordaram que melhor seria não ir buscá-la, aguardando, como outros haviam feito, que o hospital resolvesse a situação. Disseram à menina do serviço social que ambos trabalhavam e não havia condições em casa para albergar a Maria doente. Passados três dias, Maria estava a viver no corredor de um hospital velho. Na visita semanal o filho e a nora explicaram, com carinho, que não era o que queriam, mas que a mãe compreendesse que era a melhor solução. Maria fingiu aquiescer, mas lágrimas de um desconsolo profundo escorreram-lhe no rosto quando ficou a sós. Ao fazer 81 anos, foram todos visitá-la e levaram um bolo guarnecido com muitas velinhas e laranjada que Maria, alegando estar indisposta, não provou. Cantaram os parabéns e regressaram reconfortados com o dever cumprido. Um ano mais tarde, Maria viu-se entrar num lar para velhos com vista para o mar, onde despejaram o que restava da sua mobília de quarto. Um guarda-fatos e uma mesa-de-cabeceira, onde Maria colocou o seu único retrato de juventude, como réstia de um tempo longínquo em que fora feliz. Na sua mente ainda desembaraçada, pensou em outras opções de vida, mas a pensão de viuvez não permitia devaneios e resignou-se à sua sina. As visitas dos filhos foram-se espaçando no tempo, de semana a quinzena, e mais tarde nem isso porque tinham muito trabalho e a vida era difícil. Os netos já nem iam, pelo enfado de ouvir as mesmas parvoíces da velha. Maria encontrava sempre dentro de si a compreensão e a indulgência maternal para as atitudes dos filhos, que eram a sua única razão de viver, e contava os dias à espera de os ver, de os poder abraçar, ainda que por momentos fugazes. Nada a fazia mais feliz. Até que pelo rebuliço nos corredores do lar pôde entender que havia no ar uma doença perigosa que matava velhos e que as visitas iam ser proibidas. Pensou que se a tivessem escutado saberiam que daria o resto da sua longa vida em troca de um afago. Restava falar com a família pelo telefone. Maria aguardou ansiosamente pelo telefonema que nunca chegou. Amargurada pelo desgosto e sem razão de viver, Maria apagou-se tranquilamente durante o sono. Indignados com as proibições, os filhos deixaram na sua última morada muitos ramos de flores.

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