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Artigo de Opinião

CULTURAS GLOBAIS E CRIATIVIDADE

1/03/2021 08:00

Ainda que tal, ultimamente tenho me debruçado sobre o desapego. Muitas são as vidas e planos que parecem assentar em 500 anos que não vamos viver. Muitas são as trajetórias que nos fazem adiar, não realizar, não agir, deixar para depois, retrair-se. Porque assim é? Não sei dizer, sou um mero mortal e ignorante.

No de fresco passar do tempo, colaborarei com alguns nómadas que estão de passagem pela nossa Ilha e têm a possibilidade de trabalhar e desenvolver as suas actividades sem terem de estar sediados em espaços geográficos fixos. Um dos debates foi o desapego, o não ter casa, o deixar para trás, o começar a caminhar mesmo sem saber onde nos leva a estrada. Os minimalismos, o retorno à natureza, a desvalorização dos bens materiais em prol de vivências mais autênticas são clichés e vogas que têm um lado adocicado, muitas vezes para quem vê de fora. Fala-se que é "brutal", é "top" e todas essas expressões que estão na ponta da fala. Pouco se fala no lado do desapego. Não ter lar, não se sentir de lugar algum, andar sempre com a "casa" às costas parece sedutor e, no que me diz respeito e falando da minha experiência nessa demanda, tem o lado agradável, é desafiante, arranca sorrisos e momentos que guardamos no arcaz da memória e das emoções. Acontece que o desapego também está sempre presente, não é visto, é pouco falado, mas manifesta-se de distintas formas.

Catapultando a reflexão para outros campos, é mais que sabido que estes últimos tempos têm sido uma ode ao exercício do deixar, do não mais ver, do habituar-se a não ter o que nos faz falta ou o que só retemos que nos falta depois de perder. Sem nos apercebermos, fomos impelidos a um constante exercício do desapego. Muitos, na solidão, o proclamam, entes foram, a ceifa ocorreu e vai ocorrendo. Na verdade, não tenho respostas, apenas faço esta reflexão convosco. Certa vez alguém me sussurrou: "Não interessa viver muito, interessa viver!" Admito que tenho sempre dúvidas. Sei que não viverei 500 anos e isso basta-me para dar importância ao que realmente tem importância, tentando sempre resistir ao apelo do supérfluo.

Este início de ano foi fértil em vários exercícios do desapego, mesmo que estejam certos a acontecer. É melhor talvez convencer-se que a vida é curta passagem que não conseguimos agarrar quanto mais controlar. Volto ao sol e ao mar, sinalizam-nos que a vida vale e tem de valer a pena. Ir à luta, enfrentar, avançar, consoante o possível. Ir para além também pode ser caminho.

Este início de ano, como dizia, vi partir um enorme amigo, uma enorme amiga, por ironia ou não, não por Covid-19. Demasiado cedo, dizemos, com tanto para viver, bradamos. O certo é que partiram, não escolheram, não escolhemos, pereceram. Vi outras coisas partirem, vi dias se irem, momentos passarem, o tempo a esvoaçar-me das mãos. Por vezes penso que a vida é uma lição de deixar ir, o coração um saco de guardar dores, o espírito algo que levita, o corpo um entulho de ossos e carne que sucumbirá. Perdi-os, não os vejo mais por aqui. Contem-me que remédio tenho eu senão prestar mais atenção ao árduo exercício do desapego?

Desejo-vos a maior das forças para todos os desafios que estes tempos, de alguma forma, trouxeram a todos. Há sempre uma flor por essa Ilha, um recanto assoalhado, o simples traz a esperança, a esperança que o deixar ir possa ser feito com elevação e dignidade.

Abel e Magna, um dia sigo-vos.

Por fim, uma música e um conto.

Música: "Exit music" dos Radiohead, na expectativa de uma saída destes tempos.

Conto: "A Perfeição" de Eça de Queiroz, em homenagem às nossas imperfeições.

Até daqui a três quinze dias.

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