Apelos ao ódio e à morte dos fula no Burkina Faso, alguns dos quais membros de grupos extremistas islâmicos que operam no país, podem levar a um surto de violência e a degenerar numa "guerra civil", segundo analistas.
A preocupação levou o governo burquinabê, que emergiu de um golpe militar em janeiro, a condenar os apelos à morte dos fula - uma minoria no Burkina Faso, cerca de 1,5 milhões em 20,5 milhões de habitantes, como na maioria dos países da África Ocidental e Central, onde também são estigmatizados - feitos nas redes sociais, sobretudo através da aplicação WhatsApp.
O WhatsApp foi há uma dezena de dias o veículo de divulgação de gravações áudio com incitamentos à morte indiscriminada dos fulas dirigidos às populações "indígenas".
"Estes propósitos são extremamente graves, que apenas encontram correspondência nos excessos divulgados pela estação de rádio Mille Collines, que levaram ao genocídio ruandês (em 1994), uma das piores tragédias da humanidade e da qual devemos retirar lições", estabelece uma declaração do conselho de ministros burquinabê, adotada na semana passada.
Segundo o mesmo texto, "há apelos diretos e ativos à morte, assassinatos massivos, limpeza étnica e sedição", e "devem ser tomadas medidas resolutas e firmes antes que o irreparável aconteça".
Estes apelos à morte assemelham-se aos que antecederam e sucederam o massacre dos fula ocorrido em 1 de janeiro de 2019 - cerca de 150 mortos, segundo a sociedade civil; 50 de acordo com um relatório oficial -, cometido como retaliação pelo ataque à aldeia de Yirgou (norte do país) por presumíveis extremistas islâmicos armados.
Outras mortes seguiram-se no norte do Burkina Faso, particularmente em Arbinda em março de 2019, e novamente, um ano mais tarde, nas aldeias de Dinguila e Barga, onde surtos de violência resultaram novamente em dezenas de mortes, na sua maioria fula.
Em Arbinda, alegadamente "em resposta à presença crescente de grupos extremistas islâmicos armados, as forças de segurança burquinabês executaram, pelo menos, 116 homens desarmados, acusados de apoiar ou abrigar islamistas armados", afirmou a organização não-governamental Human Rights Watch (HRW), que levou a cabo uma investigação no local.
"Com algumas exceções, as vítimas pertenciam ao grupo étnico fula", afirmou a ONG de defesa dos direitos humanos.
No final de julho último, um homem foi detido por publicar uma gravação áudio com conteúdo considerado pelas autoridades burquinabês como "difamatório, insultuoso e incitador ao ódio e violência étnica", dirigida a dois líderes religiosos e tradicionais fula.
A gravação afirmava que "a comunidade fula é a causa da insegurança no país".
"Entre os cerca de sessenta grupos étnicos, é o vosso que está na origem das mortes" cometidas pelos extremistas islâmicos desde 2015 no Burkina Faso, em ações violentas que se saldam por milhares de mortos e cerca de dois milhões de deslocados, acusava o seu autor.
Drissa Traoré, professor e analista político burquinabê, lamentou em declarações à agência France-Presse que "este sentimento se tenha rapidamente generalizado, após a observação de que 90 por cento dos combatentes de grupos terroristas são de origem fula".
Traoré cita um cartaz com as caras dos extremistas islâmicos mais procurados no país, publicado pelo exército burquinabê em 2018 e atualizado em maio passado, que indica que dos 136 elencados, pelo menos 120 são de origem fula.
"A colagem é, portanto, imediata e os fula são considerados terroristas, quando 90 por cento não têm nada a ver com terrorismo", observou o analista.
"Tudo isto é sintomático das profundas divisões sociais, que têm sido exacerbadas pelo terrorismo", considera ainda o Drissa Traoré, para quem estas "divisões" são agora uma séria ameaça à própria sobrevivência do país, todos os dias à beira do caos.
Lassina Ouédraogo, outro analista político burquinabê, defende igualmente que a colagem dos "fula ao terrorismo" não é justa.
"O número de fula vítimas da violência extremista islâmica é suficiente para nos convencer de que esta comunidade está a pagar o preço mais elevado: os fula têm o maior número de mortos em ataques e o maior número de deslocados internos", sublinhou em declarações à AFP, acrescentando que, "em quase todas as localidades onde estão instalados, são rejeitados ou mesmo expulsos, acusados de serem cúmplices" das ações terroristas.
Yoporeka Somet, professor na Universidade de Estrasburgo, especialista em civilizações africanas, alerta para a cedência "à armadilha que o terrorismo coloca, nomeadamente a estigmatização assassina dos cidadãos, com base na sua real ou suposta pertença a uma comunidade, cujos membros estão envolvidos em ataques terroristas".
Alpha Barry, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros do executivo liderado pelo ex-presidente Roch Marc Christian Kaboré, derrubado pelo golpe militar de janeiro, advertiu num artigo recente publicado pela imprensa local para o "risco de uma verdadeira guerra civil", após a divulgação das gravações anti-fula, e apelou aos políticos, líderes religiosos, intelectuais, chefes tradicionais e outros líderes a "irem para o campo, encontrarem-se com o povo e a levarem a cabo ações fortes para defender a coesão e a convivência, que são o cimento da nação".
LUSA