Viagem até ao fim

Ainda é Dezembro. Estás inclinado sobre mim. São as tuas mãos que me vêem no escuro enquanto procuro a primeira água na tua fronte. Ficas comigo esta noite, uma noite só dentro das horas que o vento pára. Aí, tão recuado na penumbra, quase não existes; e pergunto-me se não te terei imaginado com o cansaço das minhas próprias mãos. Numa inesperada e tenuíssima tontura. Estás aqui há milénios, sempre estiveste. Beijas-me o ventre como se chegasses de outro lugar do mundo. De outros olhos e árvores, de outras coxas e dores, da primeira sombra ou flor.

Se eu pudesse, voltaria a entrar em casa e a deitar-me já fria no teu colo. Voltaria a nascer-te uma filha e as mãos cair-te-iam do cimo do corpo, do princípio das árvores, da mancha primitiva do céu. Agora que regresso, e o tempo se põe do lado de fora da casa, começo a contar por ti o resto das horas, dos dias, da fome e do medo. Do medo. Toco cegamente nos teus dedos e descubro-lhes o violento brilho de todas as vezes, o caminho mais longo para a partida. Quase te digo vem por aqui, mas os meus braços fraquejam de tanto subirem às sombras, de tanto abraçarem a ferida. Deito-me sobre ti como quem entra em casa. Sou o sol mais escuro reflectido na pedra, aqueço o corpo nesse reflexo onde renasce a tristeza; e as minhas mãos fundem-se nas tuas, pesando como armas brancas. A casa toma a forma dos nossos corpos, de um só corpo, a cal retém o nosso último bramido – todos os ecos no ferro quente da casa –, a voz subterrânea do filho que não nasceu, um beijo por acontecer até ao fim. Eu pela metade, na coragem, na breve ternura do teu colo. E tudo isto é de uma insuportável beleza, como deve ser a beleza que procuro. 

Eu sei, podia calar-me contra o chão e o espelho, decepar a frio as perguntas, cortar-me inteira nesse vidro que copia a minha face enquanto me não vês. Mas agora vem a tarde e os corais regressam ao fundo do mar. Já não te vejo entre o fumo e o medo. Estou do lado de dentro da casa, do lado de fora da casa. Sou este círculo que os dedos palpam sem partir. E então, vou; voo ao redor de ti como o incalculável vazio de uma nuvem terrestre. Mato a fome e a sede nos teus ombros. Talvez tombe. E desse despenhamento, talvez volte a adormecer nas tuas mãos, mesmo que elas já não estejam, já não sejam; mesmo que o pó deste vazio me entregue, de vez, o pavor salino de te não ter, de estar perto da morte – tão perto – sem poder arder do lume dos teus olhos. Como dantes, como depois.

Susana de Figueiredo escreve
ao domingo, de 4 em 4 semanas