Plumagem: o tempo que se senta sobre nós

É no teu ventre que começo do princípio, como se fosse o ventre o cume do vento. Ou o vento o cordão da estrada. Ou a estrada a mão aberta para o mar, onde a tua pele ínfima é um vidro frio por abrir, lâmpada escura contra o sol do peito. A tua pele escarlate tapada pela carne desconhecida que em ti começou. Houve um dia antes do primeiro. Um primitivo sol de que não nos lembramos, a ausente raiz da árvore que vive. As mãos - estas -força de um corpo inteiro até ao envelhecimento. Tantos anos para ser. Quantos? A faca corta o vidro, o vidro enaltece a veia, e eu já não sei de que cor ou pele se faz o vazio. Este vazio. Não sei onde terminam as tuas mãos depois do frio ou onde principiam a cabeça e a cauda do peixe morto. A que alvo se aponta a flecha contrária? A que mar se atira a pedra?

Tenho as tuas mãos deitadas sobre a vida, unhas alastradas até ao fim mais fim do corpo. O meu corpo e o teu. O corpo. A boca atemporal do sino que não toca. Quantas horas me sobrarão antes da primeira e imprevisível dobra?

Podia dizer-te, talvez pedir-te, para vires por aqui, por mim; mas de que me valem agora todos os mapas que desenhámos, aos gritos, empoleirados no futuro? Não verás? Olha-nos.

Estamos aqui, sentados sobre o tempo e os tempos; já não temos a altura das árvores nem o corpo escorregadio dos peixes que nos deram de comer. Nem a sede das margens. Já não somos a fome nem a língua, nem os claustros profundos do dia inacabado.
Houve um dia antes do primeiro, uma mão calma de tempestade afagando o ventre na fronte da maré mais escura.

A tua mão contra o frio súbito enquanto a boca se afasta ao cimo do medo, ao branco da página. E nisto, abre-se um declive para todos os lugares onde não fui, onde não estive e donde não saí. Árvores, trevas e animais indicam-me o caminho, agora que já não há tempo nem corpo para se fazer ao espaço. Apenas ventre e sopro. Princípio e morte. Vês? O que farei da terra lisa e do calor dos corpos de antes? Seriam os nossos ou os de outros? Que larvas se adivinham na tua e na minha nuca? Quantas e quais palavras esmagaremos com os dedos deste desespero sem fogo ateado?
Se eu pudesse, seria ainda e já a palavra por nascer, o peso do teu braço sobre o meu peito que acreditava. Creio em um só corpo e no escuro, na treva que calculo sob a tua língua de silêncio. No mar que sonha inundar a árvore distante. Espero como ela. Nascente. Crendo. Sou este confim feito dos animais mais simples, planos, abertos por lâminas e mãos [credo].

É tudo erosão. Cedo ou tarde, todas as marcas se apagam em lume frio. O sortilégio é brando quando recebemos sobre os ombros a pesada plumagem das horas e o corpo se transforma na planície ao fundo. É longe, hoje. Em mim e por aqui.
O que faremos se o chão nos arde sem chegar aos pés?

Susana de Figueiredo escreve
ao domingo, de 4 em 4 semanas