Controlo
Horas nocturnas a ouvir-te respirar. Respira mais alto, peço-te em silêncio, não me deixes distrair ou adormecer.
Deixa-me ficar assim, vigilante para o sopro frio da morte. A morte é uma cobarde impossível de matar, eu sei, mas deixa-me descansar acordada sobre esta manta de ilusão em que acredito poder afugentá-la, de olhos sempre abertos e mão submersa no teu peito. No teu peito quente. Dorme, que estou aqui. Eu sei, tu não és como eu, não temes os olhos fechados nem as escuridões do mundo. Nasceste com a serenidade dos deuses e a plácida bravura dos colos maternais. Já eu, tremo inteira; de dia ou de noite, não conheço em mim outra coragem além da forma da palavra, talvez por isso te tenha encontrado; ou encontraste-me tu, para me salvares da vergonha e da cobardia. Sou só eu contra o tempo, o tempo todo, torto o tempo contra mim.
Contra todos, mas mais contra mim, porque fui amaldiçoada e consigo vê-lo entre as densas folhagens que as minhas mãos não afastam. Sinto os seus ponteiros picando-me os dedos, o previsível peso do riso atrás do ouvido, os dentes mordendo-me o lado esquerdo do pescoço, afiados como fina ironia, se me distraio.
Um dia, enlouqueci. Um pouco mais. Dentro, bem dentro da escuridão, imaginei que a atravessava como um pássaro surdo e muito lento. Mais lento do que antes. De braços amputados, afunilei-me onde cabia. Encolhi o resto do corpo contra as sombras e esperei pelo frio de todos os corpos que esperam. Espero sempre pelo frio, é dele que me vem o desassossego e o medo mais áspero. Até a ternura, por vezes. Enquanto espero, arrefeço como a carne lá fora. Foi assim durante o tempo em que aqui estive, sem estar verdadeiramente. Talvez saibas que esperei por ti, que sonhei o teu corpo ainda antes de haver sangue a circular dentro do meu. Muito antes de me saber. Tu sabes.
O medo é a vil preparação para a perda, a batota da inocência com a mão levantada à criança, magia transformada em pedra final, gasta vertigem até ao fundo tão escuro do estômago.
Uma líquida pedra pronta a doer, lá, onde se somam as noites mais longas.
Olhos abertos e mãos fechadas, corpo hirto adivinhando o embate. Sabemos que as mãos, por mais fortes, não seguram respiração alguma; mas, depois, há uma mentira enternecedora que as reveste, sempre que correm em alvoroço para o teu peito, fora de mim, tão crentes e rápidas, pugnando inutilmente contra uma fragilidade que vem de um cimo por abrir, quando, por perto, os teus olhos se fecham [a fé e a ilusão cortam a meio o escuro].
Estou aqui, não saio para onde a carne arrefece. Enquanto dormes, eu travo a minha respiração pelo princípio, vigio por ti o peso das sombras. Paro inteira, sou um corpo quente em escuta.