Cento e trinta e quatro poemas para Gídea
Naquela época eu via-me como um intelectual. Um pouco poeta, um pouco filósofo, muito fora de esquadria. Não pensava como a maioria, não seguia rebanhos e considerava-me muito especial por isso. Vestia-me de preto e andava sempre sério. Admito que houvesse em mim uma certa sobranceria, mas na realidade não me identificava com as pessoas da minha idade, nem frequentava os lugares que elas frequentavam. Costumava passar as tardes no café dos intelectuais como eu – quanta presunção, assumo agora – a ouvir sequiosamente quem por lá parava. Por vezes, eles também me ouviam e eu sentia-me pertencente à tribo.
Foi aí, numa dessas tardes, que conheci Alexandre DuMar. Tinha já quarenta anos, o que para mim, que tinha apenas dezoito, fazia dele um velho. No entanto, eu fiquei fascinado com aquela figura excêntrica. Alexandre ficava sentado a um canto da sala, a fumar cigarro após cigarro e a escrever avidamente num caderno pequeno. Ficava a olhá-lo ao longe, sem coragem de abordá-lo, enquanto o via pensativo a agitar o copo de whisky fazendo as pedras de gelo chocarem umas contra as outras. Depois voltava a concentrar-se no papel e escrevia desenfreadamente, quase como um louco, horas e horas sem parar. Todos ali respeitavam-no imenso. Ele era o escritor.
Certa tarde, sem que alguma vez eu tenha percebido a razão, fez-me sinal para me aproximar. Falámos a tarde inteira, e depois toda a noite ainda. Tornámo-nos grandes amigos. Ele satisfez-me, então, a curiosidade. O que tanto escrevia, dia após dia, eram poemas para a sua amada - Gídea. Um por dia, desde o dia em que a vira pela primeira vez. E Gídea era uma mulher maravilhosa, descrevia-a como um ser etéreo, perfeita e encantadora. Mas Gídea era também carne, irresistível, capaz de enlouquecer qualquer um de desejo. Uma mulher lindíssima, com o tipo de beleza que intimida.
Ao fim de muitas tardes de conversa, acompanhadas de algum álcool, confidenciou-me que acabara de lhe vir à mente a melhor descrição de Gídea: ela trazia em si o dom do fim. Eu fiquei muito intrigado com aquelas palavras, sem perceber bem o que significavam, mas não me atrevi a pedir mais detalhes. E ele ia repetindo: traz em si o dom do fim.
Nunca vi Gídea. Ou tinha acabado de sair do café, ou viria apenas mais tarde, depois de eu partir. A verdade é que nunca me cruzei com ela. Numa ocasião, porém, Alexandre teve um distanciamento – coisa que lhe acontecia amiúde – e ficou por largos segundos com um olhar ausente. O seu espírito viajou para bem longe e quando regressou olhou para mim e disse apenas:
- Estive com Gídea. Não a sentiste agora mesmo aqui?
Um dia, Alexandre deixou de escrever. Tinha escrito até então cento e trinta e quatro poemas para Gídea. Levantou-se da cadeira, dirigiu-se à porta de saída e anunciou, com os olhos marejados de uma ausência atroz:
- Gídea morreu.
Nunca mais voltei a vê-lo. O meu querido amigo poeta. O meu companheiro de tardes e tardes de tertúlia. Contaram-me que pegou em todos os seus cadernos, com os cento e trinta e quatro poemas para Gídea, e foi até um cabo altíssimo na Ponta do Pargo, onde se via o mar bem lá em baixo. Aí permaneceu de pé, de gabardina preta vestida, cabelos longos a esvoaçar ao vento, por várias horas, rasgando lentamente cada página das dezenas de cadernos que tinha consigo. Arrancava página a página e jogava-as uma a uma, sem pressa, em direção ao mar. A última vez que o viram era já noite avançada e tinha acabado de lançar a última página. Depois nunca mais ninguém o viu.
Passados largos meses, li publicado num jornal da época um título que me chamou a atenção: 77.º dia a amar Gídea. Era um poema de autor desconhecido. E dizia assim:
Vem, meu amor!/ Mergulha em mim,/ no meu oceano de silêncio./ Percorre com a tua língua/os caminhos do meu corpo./ Arrasta-me contigo/ no turbilhão dessas vagas revoltas./ E toma para ti a minha carne.