A mosca

Era domingo, estávamos na Praia Formosa, na companhia um do outro, na esplanada do nosso restaurante preferido, a almoçar os wraps de frango que adoramos. Apesar de ser já meados de outubro e de a meteorologia ter previsto chuva para aquele dia, àquela hora, à beira-mar brilhava um sol radioso e fortíssimo, que trazia consigo uma claridade enorme, e o mar estendia-se ao longo da praia de novo sereno e convidativo.

Bebi um pouco do meu vinho branco e verbalizei o que me ia na alma: “Estou a ter um momento perfeito.”

Sabem aqueles momentos, que se sentem de vez em quando, em que tudo parece alinhado na perfeição? O lugar, a temperatura, a comida, a bebida, a companhia, o aconchego, a conversa. Aqueles momentos pelos quais vale a pena viver, em que nos dá um calor no coração, um desejo de possuirmos poderes mágicos que consigam eternizar o momento, porque a sensação é arrebatadora e plena. É isso. Plenitude. Momentos de plenitude. Momentos perfeitos.

E podemos voltar ao mesmo sítio, à mesma hora, na mesma altura do ano, com a mesma pessoa, comer a mesma comida, mas o momento já não será igual. Os momentos perfeitos são irrepetíveis. Nenhum é exatamente igual ao outro. O que nos vale é que temos vários ao longo das nossas vidas, isto se o universo decidir ser generoso connosco. E a nossa vida será tanto mais feliz, quanto maior a sucessão de momentos perfeitos.

Ele sorriu para mim e ficámos a desfrutar o momento. Eis então que surgiu uma mosca que começou a esvoaçar à minha volta, teimando em pousar-me no braço, enquanto eu a enxotava continuamente. Ao meu protesto de “raio de mosca irritante” – não sei bem porquê, mas eu atraio insetos que, aparentemente, nunca incomodam quem está comigo - ele disse: “Veio a mosca para acabar com o momento.”

Mas aí pensei que ele estava completamente errado. A mosca não seria capaz de estragar o momento. Nenhuma mosca tem essa capacidade. Porque o momento perfeito não admite qualquer interferência menor. A perfeição devora a insignificância.

Além disso, mesmo que aquilo que venha importunar seja relevante, nada pode arruinar verdadeiramente um momento perfeito. Porque é isso mesmo, um momento. E encerra em si toda a perfeição possível. Esgota-se em si mesmo. Quando o estamos a viver, já está. E tudo o que vier depois virá sempre depois do momento perfeito. Que continua pleno para sempre, imperturbável.

Comecei então a descrever-lhe os momentos perfeitos que tenho sentido na minha vida, os tais momentos de felicidade plena. Já tive essa sensação estendida no sofá com a minha filha, enroladas numa manta, a ver um bom filme na televisão. Também já tive no almoço de família de sábado, em casa dos meus pais, todos sentados à mesa, a partilhar uma boa comida e um bom vinho, conversa solta e franca, riso fácil. E ainda a percorrer um trilho na montanha em excelente companhia, cercada pelo silêncio da serra, a ver o mar lá ao fundo, caminhando dentro da natureza, sentindo-me parte dela, da rocha, das árvores, da água que corre na levada, a ouvir apenas o som da minha respiração.

Apercebi-me, enquanto falava, que nenhum dos momentos perfeitos de que me lembrei decorreu de experiências radicais, complicadas, exóticas ou dispendiosas. Tudo simples, tudo básico. Tudo memorável.

A mosca? Essa acabou por nos deixar. Compreendeu que não era momento para interrupções e voou para longe, deixando-nos mergulhados na nossa conversa sobre tudo e sobre nada, sobre o calor, o momento, a perfeição e o sentimento.