A casa dos avós
Quando eu era criança os meus avós maternos levavam-me com eles quase todos os fins de semana para a sua casa em São Gonçalo. Naquela época, ir da Rochinha a São Gonçalo era como percorrer um caminho de volta ao passado e eu sentia que me levavam para uma terra bem distante, muito diferente da realidade a que estava habituada.
Na verdade São Gonçalo mantinha ainda alguma ruralidade naquele tempo. Em redor da casa dos meus avós havia terrenos cultivados com bananeiras e a vizinhança criava animais nas fazendas. Os cheiros e os sons eram os do campo. Eu acordava a ouvir um galo a cantar pelas redondezas. O sino da Igreja tocava de hora a hora. Os pássaros chilreavam nas árvores do quintal.
O meu avô saía bem cedo para ir até à Quinta da família e eu mantinha-me mais um pouco aninhada na cama com a minha avó. Acordávamos bem devagarinho, sem pressa, a preguiçar, e íamos pelo quintal até à cozinha, que ficava numa divisão fora da casa, num anexo.
Após o pequeno-almoço era hora de tomar banho numa banheira branca de ferro, de pés salientes, que a minha avó enchia com baldes de água aquecida no fogão. A água ia sendo reposta à medida que arrefecia e a avó banhava-me com uma caneca de alumínio.
Enquanto a avó andava ocupada com os afazeres domésticos, a cozinhar, lavar roupa no poço e estendê-la nas cordas que atravessavam o quintal, eu passava o dia a explorar a casa e a tentar descobrir os seus mistérios.
Era uma casa pequena, com poucas divisões, mas cheia de segredos por descobrir. Espreitava pela fechadura da porta da sala de jantar que estava sempre trancada, pois destinava-se apenas a receber as visitas. O meu avô tinha lá um rádio antigo enorme, que parecia um móvel, de madeira reluzente e cheio de botões. Eu ficava de boca aberta a olhar pelo buraco da fechadura para aquele espaço proibido, a tentar desvendar todos os seus pormenores.
Mais tarde o avô chegava da Quinta, onde se deslocara para alimentar os animais e tratar dos poios que ainda mantinha cultivados, cheio de amores de burro presos às calças, e a avó ralhava com ele, por vir tão tarde e tão sujo. A avó não permitia que o avô tivesse animais em casa, e então o avô mantinha umas cabrinhas na Quinta e uma cadela grande e já velha que o acompanhava enquanto vistoriava os terrenos.
A Quinta ficava apenas um pouco mais acima, no Caminho do Cemitério, mas eu não estava autorizada a ir até lá, porque encerrava demasiados perigos. A casa permanecia desabitada, desde que a minha bisavó havia falecido, a precisar de profundas obras de reparação, e os vastos terrenos circundantes estavam ao abandono, cheios de mato e de erva. Longe iam os seus tempos áureos, em que produzia toneladas e toneladas de bananas, na época em que a minha bisavó comandava com pulso forte os trabalhadores contratados para cultivar a terra.
A casa dos avós já não existe. A avó nunca mais foi capaz de lá regressar após a morte do avô. Acabou por ser entregue ao senhorio que a demoliu, para fazer parte de uma urbanização moderna que nasceu no local.
Na minha memória a casa dos avós era muito mais do que uma casa. Aos fins de semana fazia a viagem para o meu sítio de refúgio, de colo, onde estava com quem me amava e me protegia de qualquer mal. Do miradouro abaixo da Igreja consigo ainda visualizar o portão de ferro que se abria à imponente entrada ladeada de flores, e a casa lá ao fundo, erguendo-se acolhedora e sólida. Para mim ainda está lá, em São Gonçalo, para me amparar.