O amor na origem do medo
Perguntaram-me recentemente se já tinha sentido alguma vez medo na vida. Fiquei a pensar um pouco e respondi que já tinha tido medo em duas ocasiões. Nas duas situações em que receei precisamente, por um breve momento, perder a vida. Então descrevi o que me aconteceu.
A primeira vez que senti muito medo foi numa viagem de autocarro, durante o tempo de faculdade, de Coimbra para o aeroporto de Lisboa. Vinha sozinha embrenhada nos meus pensamentos, feliz por regressar a casa nas férias, quando a dada altura o sistema de suspensão do autocarro avariou e o veículo ficou incontrolável, aos saltos. O autocarro balançava de um lado para outro e eu, que estava sentada do lado da janela, via o alcatrão a passar rente de cada vez que o solavanco atirava para o lado esquerdo. Agarrei-me com toda a força que tinha e, naquele instante, só pensava que seria ali que a minha vida acabaria. Depois seria o nada.
Após alguns minutos de tensão (ou terão sido apenas segundos?), devido à extrema perícia do motorista o autocarro acabou por ser controlado e encostado à berma da autoestrada. Saímos todos em choque e esperámos do lado de dentro do rail de proteção que um novo autocarro fosse enviado para nos recolher. Mal pus os pés no alcatrão tirei o telemóvel da bolsa e liguei à minha mãe a chorar. Queria apenas ouvir a sua voz e sentir o seu colo. Queria que me sossegasse e me fizesse voltar a acreditar que estava em segurança.
A segunda vez que tive muito medo foi quando tive um acidente de viação no Funchal, no túnel da cota 40, na descida em direção à Cruz Vermelha. Vinha novamente sozinha, embrenhada nos meus pensamentos. Lembro-me de carregar comigo uma grande tristeza naquele dia. De repente uma mota veio na minha direção, bateu no meu carro e fez-me perder completamente o domínio da condução. Fui violentamente atirada contra o outro lado da via, embatendo na parede. Ainda hoje as marcas continuam gravadas na parede de betão do túnel.
Foram segundos de pânico, em que tive consciência que estava a viver um acidente e não havia nada que pudesse fazer. Apercebi-me que poderia não sair dali com vida. Fiquei paralisada dentro do veículo imobilizado e só consegui sair daquele estado de dormência quando começou à minha volta o aparato de agentes da PSP, ambulância e reboque. Aqueles segundos ficaram muito turvos na minha memória, eu nem sou capaz de descrever com rigor o que se passou, a sequência de acontecimentos. É como se tivesse sucedido a outra pessoa. Como se aquele carro, que parecia um brinquedo nas mãos do destino, lançado brutalmente contra a parede, tivesse sido conduzido por outra pessoa.
Mas, depois de ter falado sobre as ocasiões em que senti medo, fiquei a pensar que, apesar de violentos, aqueles momentos foram estanques. Os dois incidentes, embora me fiquem gravados para sempre na memória, não me condicionam, nem me acompanham. Não ficaram em mim.
Há circunstâncias de que tenho infinitamente mais medo. Que me deixam em pânico, totalmente perdida, sem chão. Eventualidades que ainda não aconteceram, mas que morro de medo que se concretizem. Na verdade, o que me deixa mais assustada e aterrorizada é o receio que tenho de perder quem muito amo. O medo de receber o telefonema com a notícia.
Este sim, é o meu verdadeiro medo. O medo profundo que está instalado em mim, que me segue, que me apavora, que me assombra. O medo que nunca acaba, que permanece. O medo de ter de continuar a vida sem aqueles que me são mais preciosos. O medo de lhes sobreviver.