O coração na ponta dos dedos
Se eu fosse totalmente livre, tão livre como as crianças, escreveria mais vezes com o coração. Exporia os meus pensamentos mais profundos, contaria as histórias da minha vida ao ritmo dos seus batimentos, não teria qualquer receio em revelar o que sinto e como sinto, na sua exata medida. Aliás, com total franqueza, se me permitisse ser livre escreveria sempre, apenas e somente com o coração.
Acontece que fraquejo perante os argumentos de quem lê o que escrevo antes de ser publicado e insiste em pôr a nu os perigos que me espreitam a cada esquina. Apesar de contra-argumentar ferozmente e tentar resistir com energia, acabo por ser permeável às críticas de quem sei que me quer bem e me alerta para os perigos de expor as camadas mais íntimas do meu ser, para a maldade e as invejas que correm ligeiras neste mundo. Acabo (quase sempre) por recuar, deixando-me contaminar pelas cautelas que me derramam em cima, não sem antes me deixar entristecer.
Tenho já alguns textos escritos guardados na gaveta que ainda não tive a audácia necessária para enviar para publicação. Quem os leu aconselhou-me com prudência a evitar a exposição e a guardá-los só para mim, protegendo-me, deste modo, do demónio que parece andar por aí.
Não acredito na maldade, nem na crueldade, nem na inveja, nem no ódio, nem no rancor, nem na amargura. Para mim, na essência do ser existe o bem. Não me importo nada de ser vista como ingénua, mas continuo a fazer questão de esperar sempre o melhor dos outros. Sempre. Contudo, garantem-me, há mesmo muita gente maldosa por aí, à procura de uma ferida, de uma cicatriz, por onde começar o esventramento dos outros. Asseveram-me que se me revelo demasiado frágil e sentimental, como de facto sou, serei barbaramente trucidada.
Eu, no entanto, persisto em ser toda sentimento e emoção, e a revelar isso no meu dia a dia, em todos os espaços onde me sinto segura. Em família, no meu círculo íntimo de amigos, com o meu amor. De vez em quando, como teimo em escrever como se fosse apenas para mim, esqueço-me dos avisos que me fazem e deixo transbordar sentimento e emoção naquilo que escrevo.
Confronto-me, de quinze em quinze dias, com este conflito interior. Eu quero escrever com o coração na ponta dos dedos, a saltar-me pela boca fora, a invadir cada célula do meu corpo. Mas, por outro lado, não tenho a força e o desprendimento que requer a nudez da revelação dos sentimentos. Não tenho a coragem e a ousadia do cronista barbudo, de cabelo comprido, das quintas-feiras.
Na verdade, a minha natureza fraca permite que a dúvida se instale no meu espírito, me invada do seu tom escuro e de silêncio e, nesse momento, perco mesmo a vontade de dar a ler o meu coração.
Um dia, vou prometendo a mim mesma, hei de ser destemida e escrever o que deve ser escrito. Vou contar como a realidade da minha vida é infinitamente mais mágica do que todos os sonhos que porventura tive, que todos os livros que li, que todos os filmes a que assisti. Vou descrever o amor que vive em mim. Vou confessar que, quando olhamos nos olhos um do outro, não há em nós nada mais do que nós. Vou explicar como tudo o que está à nossa volta se dilui quando estamos juntos, como tudo o que existe para além de nós se torna mero cenário, sombras esbatidas, sons longínquos.
Vou eternizar em palavras escritas o que sinto e vou imortalizar sentimentos, partilhando-os. Porque a essência da vida não deve ficar guardada na gaveta. Aquilo que é realmente precioso é tudo o que vale a pena ser revelado ao mundo.