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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

31/12/2021 08:00

O sabor da cerveja gelada ao primeiro golo tornou-se um dos meus maiores prazeres enquanto vivi em África. É uma memória inesquecível e sem paralelo. Coisa simples, mas profunda, sobretudo depois de uma caminhada de três horas nas plantações de chá da Alta Zambézia ou a meio de um dia escaldante e húmido ou ao cabo de uma viagem de ‘chapa’ por uma estrada infinita cheia de poeira. Às vezes, em noites de lua cheia e muito calor, eu até sonhava com aquilo e, por outro lado, sempre que iniciava os passeios, a pé ou de carro, o meu primeiro pensamento ia inteirinho para o sabor revigorante da cerveja gelada quando chegasse ao fim.

Eu entrava num bar ou numa barraca mal-amanhada na beira do caminho e perguntava:

- Tem cerveja gelada?

Um ou outro empregado dizia-me assim:

- O patrão até vai partir os dentes.

O resultado, porém, nem sempre era positivo, porque a arca congeladora tinha ficado desligada toda a noite e a cerveja estava mole, ou vice-versa, e a cerveja estava em pedra. Era preciso esperar. E esperar, tantas vezes, quebra o enredo do desejo e despista o pensamento no absurdo da existência.

Então eu virava filósofo enquanto aguardava que a cerveja atingisse a temperatura ideal, perdido num recanto do fundo de Moçambique, sentado numa cadeira de plástico, cheio de sede, tanta sede, observando as pessoas que passavam na rua de terra batida, para cá e para lá, imbuídas na sua rotina tão desconcertante, em que a alegria de um só dia vale mais que a miséria da vida inteira.

E eu pensava: O problema não é a coisa em si, mas o tipo de pensamento que desencadeia. O perigo está no pensamento, nunca no problema em si. Adaptar-se ao problema, seja lá o que for, é fácil desde que não se pense nele. Assim, vive-se uma vida inteira e não vem mal nenhum ao mundo por isso.

O pensamento é, de facto, muito perigoso! E, depois, não se vive. Pensa-se. A isto podemos até chamar eternidade e, de caminho, também podemos fingir que somos imortais, agarrados aos sonhos e aos apetites, amarrados à matéria que se ganha e avoluma, diluídos na intimidade que se perde e gasta.

No fim, o homem é apenas o seu passado, nada mais - pensava eu naquele tempo e ainda agora penso o mesmo, embora a cerveja aqui não tenha o mesmo sabor, nem o primeiro golo me incuta igual prazer. Já agora - convém lembrar - o que mais conta é o que se faz véspera da nossa morte, sobretudo da morte figurada, que é múltipla e recorrente. Esta é a graça da vida e a sua desgraça também.

Está confuso, não está?

Vou explicar doutra maneira.

Um dia subi na carroçaria de um canter, apinhada de mercadoria e de gente em cima dela, para uma longa viagem em estrada péssima entre Mocuba e Pebane, duas localidades da Zambézia, aquela junto ao Licungo, esta sobre o Índico. Pelo caminho, tivemos dois pneus furados, um de cada vez, pelo que a jornada se tornou ainda mais demorada, horas e horas de caminho no meio do mato, e até aconteceu que adormeci e resvalei levemente entre a massa humana e por pouco não caí na estrada com o carro em andamento.

O motorista era branco, um português da velha guarda, embora tivesse sobrenome polaco - Pompinski, ou algo assim. Volta e meia deitava a cabeça fora e perguntava aos gritos se estava tudo bem comigo. Preocupava-se comigo por eu ser branco e português como ele, mas não se ralava muito com os outros passageiros. Fazia-lhe uma certa impressão de que eu fosse na carroçaria, mas tinha vendido os lugares na cabine a dois comerciantes indianos e não havia nada a fazer.

- Em Pebane ofereço-te uma cerveja gelada - disse-me ele no início da viagem e repetiu-o várias vezes no decurso da mesma.

Eu fiquei a pensar naquilo e fartei-me de imaginar o sabor mágico da cerveja ao primeiro golo, mas quando ele saiu do bar com uma garrafa de meio litro estendida para mim, não foi isso que aconteceu. A cerveja estava quente. Ainda assim, bebi toda.

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