A primeira vez que isto aconteceu, eu tinha uns 23 anos e foi assim: estava a arrumar as coisas num avião, para uma viagem entre Lisboa e o Funchal, quando alguém me bateu nas costas. Olhei e vi um tipo, mais ou menos da minha idade, que não conhecia de lado nenhum.
Ele disse:
- Então, Duarte, tudo bem?
Fiquei perplexo, desarmado, e pus-me a pensar quem diabo seria, a procurar nele um sinal para me acionar a memória, qualquer coisa reveladora, um trejeito, uma expressão facial, fosse lá o que fosse, mas não encontrei nada, ao passo que ele sabia tudo a meu respeito, visto que perguntou pela minha irmã Marta, pelos meus pais, pelas minhas tias, a dizer o nome delas, Teresa e Conceição, e eu a responder que estavam todos bem, a querer saber também como ia a vida do seu lado, tudo naquele instante enquanto nos acomodávamos.
- Ainda moras no Laranjal? - Perguntou-me.
E eu:
- Sim, ainda moro lá em cima.
Mas sempre a pensar: Quem é este gajo?
E ele:
- Eu tou lá em baixo, no mesmo sítio.
Depois, ele foi para o seu lugar, duas ou três filas atrás, e eu fiz a viagem a matutar: Quem é este gajo? Mas quem é este gajo? Podia ser um colega da escola primária, ou da Francisco Franco, talvez dos Ilhéus, se calhar foi do Girassol, ou então é um gajo que fez tropa comigo, ou daqueles que trabalharam com o meu pai nas obras. Não descobri. Até hoje.
Desde então, situações como esta tornaram-se frequentes, deixando-me sempre sem jeito, atarantado, a pensar em sintomas precoces de uma daquelas doenças que desfazem o juízo, como acontece agora com a minha tia Conceição, que não reconhece ninguém, não sabe sequer quem eu sou, depois de ter vivido quase toda a minha vida com ela, e passa o tempo do fim à espera que os mortos regressem a casa, a dizer que ainda agora o seu pai estava ali, as irmãs também, todos juntos, mas já foram embora.
- Hão de voltar mais tarde, à noitinha - diz ela, com esperança.
É um problema sério. Esqueço-me das pessoas. Não lhes fixo a forma, quando não lhes conheço a alma. Se deixo de conviver com alguém, o mais certo é apagar-se em mim ao cabo de um ou dois anos. E se me apresentam uma pessoa hoje, amanhã sou capaz de passar por ela sem a reconhecer, coisa que fica sempre mal, porque dá a ideia de ser emproado, cheio de manias, e não é nada disso.
Naturalmente, há pessoas de quem nunca me esqueci, de quem nunca me hei de esquecer, mesmo estando longe, mesmo para lá da eternidade, e outras que não conheço, mas sei quem são, por causa duma qualquer característica peculiar e imutável aos meus olhos. Às vezes, até sei quem é a pessoa em questão, mas falta-me o nome, e isto também é lixado.
Há gente que me acena ao longe e eu fico a pensar: Quem será? Uma vez, por exemplo, cruzei-me na rua com uma mulher e ela abriu-se num sorriso maravilhoso e abraçou-me e disse:
- Há quanto tempo, Duarte!
Eu respondi, com um sorriso igual ao dela:
- O que é feito de ti, mulher?
Mas não sabia quem era. Nem sei.
Noutra ocasião, ia a passar perto de uma esplanada e estava lá um gajo sentado que fez cara de me conhecer e me convidou para tomar um café e eu, por impulso, aceitei o convite e estive dez minutos a conversar com ele sem fazer a mais pálida ideia de quem fosse.
Volta e meia, admito tratar-se de confusão, alguém que me aborda porque sou parecido com outro qualquer, acontece a todos, mas quase sempre as pessoas sabem quem eu sou, dizem o meu nome, perguntam pela minha família, falam de lugares concretos. Eu é que não sei quem são.
- Não me digas que não te lembras de mim! - Disse-me um dia uma rapariga, meio irritada.
Eu, sem saber de todo quem era, respondi logo:
- Claro que me lembro, só me esqueci do nome.
Num certo sentido, foi como perguntar por mim:
- Quem és tu?