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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

26/11/2021 08:01

Um dia disseram-me que na hora da verdade a história é sempre a mesma - falsa. Ou seja: quando vamos a ver bem a coisa, nada é o que parece. Nunca. Escrever, então, é uma forma superior de encantamento da realidade, porque a palavra escrita, talvez por ser antiga e decisiva na evolução da Humanidade, faz com que tudo ganhe foros de autenticidade, incluindo o crime, o logro e a mentira.

A gente diz assim:

- Está escrito!

E passa a ser verdade, seja lá o que for: a Bíblia, o Livro de São Cipriano, a Teoria Geral da Relatividade, o Diário da República, a História Universal da Infâmia, o Dicionário da Porto Editora, Anna Karenina e D. Quixote de La Mancha, Cosmos, Sapiens e a Breve História do Tempo, o programa eleitoral do partido xpto e o do partido dpco também, os Lusíadas e a Metamorfose, a Enciclopédia Britânica, a Rosa do Mundo, Figuras Numa Paisagem, 1984, o relatório de contas da empresa tal e a sentença do tribunal, bem como todas as redes sociais, chinesas e americanas, a revista Science, o jornal X e o diário Y, tudo e mais alguma coisa, incluindo o Horóscopo, a Vida Depois da Morte e Do Fim Ao Infinito.

É tudo verdade! Tudo!

Está escrito. Ponto.

Às vezes, eu penso que vou enlouquecer no meio desta confusão e faço cá um esforço do estupor para não descarrilar. Travo a fundo na beira do abismo e fico ali a balançar, vai não vai. Um dia, também eu vou morrer, talvez aqui, talvez nos antípodas. Hoje não. Consigo suster-me. Passo a mão pela testa, limpo o suor da vertigem. Desta vez, escapei. Bebo um copo de vinho em silêncio e sigo viagem.

Agora é a pandemia. É preciso fazer isto e aquilo e aqueloutro - ok, não há problema. Façamos. Vamos todos salvar vidas. Dez minutos numa fila não custa nada, sobretudo quando ficámos lá duas horas. Já sabem, se for preciso atravessar passadeiras de joelhos, é só dizer. Obviamente será por uma questão de segurança rodoviária. Não duvido.

De resto, fica sempre bem salvarmo-nos uns aos outros, não acham? Assim como tentam fazer os que morrem afogados no Mediterrâneo, com a gente a vê-los à distância, através dos nossos aparelhos de conhecer o mundo sem ter de ir lá. A gente aqui impotente, de testa franzida, imóvel, a vê-los morrer, como se eles fossem também uma pandemia que exige o nosso confinamento. Isto para não falar de coisas ainda mais trágicas, algumas aqui mesmo no fundo da rua, para as quais se encontra sempre uma justificação à medida de quem as provoca e da nossa inação. Há sempre um estudo científico, um parecer jurídico, uma análise técnica que nos iliba do horror do mundo e nos garante um pouco da sua beleza, da sua leveza.

Sim, nós não temos culpa de nada. O problema são os outros, os que vivem ao contrário da gente. Eles é que desarranjam a ordem, eles é que soltam os demónios, eles é que querem o nosso mal. Se não fosse essa gentalha maldita que por aí anda sempre a chatear, tenho a certeza de que não seríamos tão ruins no dia a dia, nem mesmo quando nos falta tudo - dinheiro, amor, saúde - nem mesmo quando temos tudo - saúde, amor, dinheiro.

Nós somos os bons, não é verdade?

Claro que sim! Sobretudo na hora da verdade…

Já agora devo dizer que tudo isto me saltou à cabeça quando um tipo me parou na rua, aqui há dias, e pediu dinheiro.

- Amigo - disse ele -, tá-me a faltar 85 cêntimos.

Eu, porém, estava pior do que ele. Este mês ando à rasca: zero no cartão da alimentação, zero no banco, zero na algibeira. A atualidade é sempre uma coisa terrível, já se vê. Por isso, podia ter sido mau com ele, mas optei pela salvação de ambos:

- Espera até ao fim do mês.

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