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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

12/11/2021 08:01

A viagem mais arriscada que fiz aconteceu em 2013, quando decidi regressar a Moçambique, três meses depois de ter saído de lá, no ano anterior, com a promessa e a certeza de nunca mais voltar. Eu tinha chegado ao país em 2008 e ao cabo de quatro anos - três como professor voluntário numa missão católica e um de pura vagabundagem - achei que era o fim da aventura, não havia mais nada para fazer ali. O encantamento e o horror estavam consumados, esgotados, dissecados. Além disso, o meu dinheiro tinha acabado. Então, arrumei a mochila e regressei a casa.

Meti-me num ‘chapa’ apinhado de gente às quatro da manhã e fui para Quelimane, capital da província da Zambézia, a cerca de 400 quilómetros, onde passei a noite. Depois, voei para Maputo e, no mesmo dia, embarquei para Lisboa, sempre determinado a nunca mais regressar. Eu amo África e Moçambique estará para sempre no meu coração, mas há um tempo para tudo debaixo do sol e aquele, por mais que me custasse, tinha chegado ao fim.

No entanto, não me sentia bem na ilha. Não tinha trabalho e não sabia como ocupar o tempo. Andava à toa, sozinho, sem dinheiro para nada, a roupa velha, a sola das botas rotas, as noites mal dormidas e os sonhos ausentes. Tudo me parecia insípido e desbotado, demasiado certinho e higienizado, as pessoas, os dias, as coisas, até mesmo a loucura da minha tia, com quem eu vivia, e a ruína das nossas propriedades eram normais e bem arranjadinhas, cenas perfeitas do primeiro mundo, e eu comecei a ter saudades de África e a querer fugir daqui.

E assim foi.

O meu visto de residente em Moçambique tinha validade até fevereiro de 2013 e eu consegui amealhar para comprar uma passagem. A minha intenção era renová-lo por mais seis meses e para isso reservei também uma quantia. Quanto ao resto, havia uma cabana à minha espera e a promessa de ser bem recebido naquela cidadezinha encantada da Alta Zambézia, no sopé dos Montes Namuli.

Parti no dia 21 de janeiro de 2013, só com o bilhete de ida, o dinheiro contado para renovar o visto e mais duzentos euros no bolso para gastos no percurso. Duzentos euros era o meu rendimento mensal naquela época e resultava do arrendamento de um terreno agrícola. Por isso, digo que foi a viagem mais arriscada e também foi o meu último devaneio em África. O risco não provinha dos perigos do caminho, como se vê, mas da escassez de dinheiro, coisa deveras muito angustiante, sobretudo quando estamos longe de casa, noutro continente.

Quase tudo correu mal. A renovação do visto custou mais do que o previsto e forçou-me a andar três semanas sem o passaporte, o que é bastante perigoso num país do terceiro mundo. Tive de pedir dinheiro emprestado a um amigo branco, um dos raros que viviam na zona, para me aguentar até ao fim do mês. Ao mesmo tempo, tornei-me desavindo com tudo o que me rodeava - a miséria, a ignorância, a superstição, o modo de ser e de viver dos africanos - tudo me enervava soberanamente.

Comecei logo a ter saudades da minha terra e a querer fugir dali para fora, tal como antes tinha querido fugir da Madeira. Agora, porém, não tinha dinheiro, nem bilhete de regresso, nem passaporte. Sentia-me aflito e a solidão esmagava-me. O medo também. Andava sempre com dores no pescoço e um constante desarranjo intestinal. Pensava muito em Deus na sua forma de Morte e também pensava que me tinha tornado estupidamente caprichoso, já não era um viajante, estava perdido.

Como se isto não bastasse, não parava de chover desde a minha chegada. Chovia dia e noite, às vezes torrencialmente, com trovoada e relâmpagos de arrepiar, outras vezes mansamente, quase nada, mas sempre a chover, sempre escuro, e eu mal pude sair da cabana durante um mês. Passava horas e horas à janela a ver a chuva cair e foi um inferno até que o sol voltasse a brilhar em mim.

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