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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

27/08/2021 08:01

Sábado à tarde, durante um breve sono, sonhei que estava a atravessar a rua em frente ao prédio onde moro e fui atacado por um cão. Era um rafeiro grande e forte, cor de terra molhada. Veio na minha direção a rosnar, com os dentes arreganhados, e mordeu-me na mão esquerda. Ficou ali agarrado, a sacudir o pescoço. Eu tentei livrar-me dele, dando-lhe pontapés e socos com a direita, mas não consegui. O cão, cujo pelo era curto e luzidio, não me largava e eu senti os ossos quebrar sob a pressão dos seus dentes possantes. Lutei o mais que pude contra o bicho, triste e confuso pelo ataque, mas o que me salvou foi ter acordado de repente, muito aflito, a suar em bica. Depois - e esta é a verdadeira natureza dos sonhos - continuei a sonhar a mesma coisa no pensamento. O cão avançou outra vez, agachado, pé ante pé, olhos fixos a cintilar, lombo eriçado, e atirou-se à mão esquerda. O sangue esguichou - o chão ficou vermelho. Os ossos partiram como vidro - os belos ossos da minha mão esquerda, esta mão que segreda o mundo de dentro ao papel, agora caída, inutilizada ante a ferocidade de um rafeiro e ele continua bem grudado nela, a rosnar, os seus músculos tensos e luminosos a tremer, e, no entanto, já passaram horas desde que acordei e, querendo esquecer o sonho, pus-me a reler o último capítulo de ‘O Coração das Trevas’. É do melhor que se escreveu para dizer o que é um homem e eu não sei por que ainda escrevo, não sei mesmo. Todos os dias penso que esta palavra - esta mesmo - pode ser a última, deve ser a última, merece ser a última, porque não traz nada de novo, nenhuma luz, nenhuma salvação. Esta palavra é inútil, como o cão a esmagar-me os ossos da mão esquerda, uma mão assim tão delicada que folheia o livro no vácuo da tarde e com esse gesto diáfano de virar as páginas faz-me recuar ao tempo de África, traz-me de volta aquele encanto, aquela miséria, aquela brutalidade, e também os recuos ao infinito que, por sua vez, aquela força selvagem me impunha. Todos os dias eu me visitava em África, onde a chave do mistério do ser e da sua aventura está embutida nas coisas, nas pessoas, nos bichos, no que há e não há, na carne e na magia, no que se vê e não existe, no que existe mas nunca se vê - a seiva das aparências, o fingimento, o processo bruto da dor, a facilidade com que se destrói a alegria e aniquila a beleza, o nascimento da esperança e da impaciência, o sopro do amor e da loucura, a torrente das emoções e o desejo de fortuna, a guerra civil dentro de cada um, o silêncio no fim e a agonia do tempo que nos resta em morte lenta. Uma vez, no fundo da Zambézia - eu sei que isto está confuso, mas não vou cuidar da forma nem fazer parágrafos curtos para ajudar a leitura, estou só a escrever um sonho e pode até ser o fim da escrita - comprei qualquer coisa numa banca de rua e deram-me uma pastilha elástica como troco. Quando a pus na boca - ai meu Deus! - aquele sabor foi como a história do Proust, tal e qual - apareceu-me a infância inteira diante dos olhos. A primeira coisa que vi foi a porta da venda do André, onde eu comprava os ‘Piratas’, e depois vi tudo, tudo, tudo até ao último vestígio de inocência, e vieram-me as lágrimas à superfície, e eu chorei no caminho de terra batida, esmagado pela solidão e pela distância, mas sempre com vontade de ir mais além, mais além, mais além até onde cheguei, e agora vejo que o cão avança para mim atraído pela aliança na mão esquerda e ataca-me para ma roubar - aquele maldito rafeiro é a imagem do medo que eu tenho de perder a felicidade e ser arrastado outra vez para o horror do labirinto, o horror da viagem, o horror da última palavra.

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