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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

6/08/2021 05:00

Era o mês de julho e a noite estava quente. Ao fundo, as luzes de um navio de cruzeiro brilhavam com intensidade e repercutiam-se no mar. Mais ao fundo, do outro lado, as luzes da cidade também brilhavam cheias de vida e os seus reflexos expandiam-se igualmente pelo mar adentro, como se fossem prata líquida caída do céu. Nesta história há dois homens e uma mulher entre eles e a mulher vai separá-los para sempre - um clássico do amor trágico, mesmo quando não há tragédia nenhuma. Seja como for, o que vou contar aconteceu há muito tempo, mais de vinte anos, e tanto pode ser realidade como ficção. Quem lê, decide. É sempre assim. A verdade e a mentira dependem dos outros, nunca do indivíduo.

Os dois homens entraram no automóvel, um calhambeque todo escavacado. O mais forte sentou-se ao volante, o outro no lugar do morto. A mulher não estava presente, mas habitava no coração e no pensamento de cada um, como uma fogueira a quebrar a escuridão das almas e a queimar a vigor dos corpos.

Tanta poesia para nada.

Arrancaram numa viagem de adeus.

Estiveram nos bares do costume e noutros por acaso e a cada hora bebiam mais e mais, bebiam cada vez mais. Falavam com pessoas conhecidas e com sombras também; falavam com pessoas que eram sombras; falavam com o nevoeiro e com o fumo dos cigarros; falavam com os espíritos da noite e viam o mundo deslocar-se em câmara lenta, para trás e para a frente, às vezes em silêncio, outras vezes mergulhado no ruído e no caos.

Percorreram ruas vazias e ruas escuras. Depois, percorreram ruas radiantes e frenéticas, cheias de luz e brilho. Outra vez ruas medonhas e sombrias, ruas onde é possível matar uma pessoa sem sabermos jamais quem foi o assassino. Novamente ruas iluminadas, ruas vazias, ruas escuras - a cidade inteira, a noite esventrada.

O automóvel rodava e rodava e continuava a rodar.

Ouviam gargalhadas, as suas próprias gargalhadas. Ouviam o tilintar dos copos e do gelo nos copos. Ouviam o tilintar das garrafas e do vazio do ser dentro das garrafas. Ouviam também o tilintar da eternidade e o grito dos amores ainda por vir. Ouviam vozes ao longe. Luzes perdidas. Olhos arregalados. E o automóvel rodava e rodava e continuava a rodar.

Era a bebedeira. A grande bebedeira. A confusão. O esquecimento.

Por fim, amanheceu e cada um acordou em sua casa, cada um com sua ressaca, sua dor, sua solidão.

Um deles subiu ao terraço a meio da manhã e viu o navio de cruzeiro a afastar-se. Era um pequeno volume de brancura deslizando sobre o azul imponente do mar, rumo à linha do horizonte, rumo ao abismo. Então, lembrou-se da conversa no porto. Era a única lembrança nítida que guardava da noite. Não se recordava de mais nada com precisão. Para ele, as últimas vinte e quatro horas resumiam-se aos quinze minutos em que estiveram no porto, ao pé do navio de cruzeiro. Lembrava-se de ter dito:

- Deixa-me dar-te um abraço, amigo, porque esta é a última vez que falo contigo na vida.

E o outro respondeu:

- Isto não tem de acabar assim.

Depois, não se lembrava de mais nada.

Poucos dias depois, os dois homens avistaram-se no centro da cidade, mas um deles mudou de lado na rua, para evitar cruzar-se com o outro, que, naquele momento, foi tomado por uma tristeza tão rara e infinita como jamais viria a experimentar. Curiosamente, o que mudou de lado sentiu o mesmo.

E ficaram assim…

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