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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

30/07/2021 08:01

É claro que eu sou um menino da mamã, ainda que nunca tenha tratado a minha mãe por mamã ou o meu pai por papá - foi sempre mãe e pai - e também tenho manias de menino da cidade, claro que tenho, embora seja nado e criado nas zonas altas, onde antigamente não havia dinheiro para nada nem tempo para uma série de mariquices como hoje em dia e a vida corria de forma maravilhosa, com apenas um banho de corpo inteiro por semana. A gente ia à escola na parte da manhã ou na parte da tarde, conforme o ano, e passava o resto do dia a brincar, perdidos na fazenda ou na beira da ribeira ou a jogar à bola no caminho. Havia montes de putos à solta naquele tempo e depois armávamos lutas entre grupos, pedrada de ferir lume, esperas à saída da escola para concretizar vinganças - meu Deus, aquilo era lixado - mas a seguir ficávamos todos amigos outra vez e vinham novas aventuras, mais descobertas, outras experiências. E, de repente, quando eu estava em cima do muro do poço ou no meio dos eucaliptos ou no último poio a apanhar lagartixas, a voz da minha mãe atravessava a floresta mágica em altos berros:

- Duaaarte!

Se eu não respondia logo, a voz ganhava um tom trágico e angustiado:

- Duaaaaaarte!

E assim sucessivamente.

A sílaba do meio, aquela que lança ‘arte’ no meu nome, tornava-se cada vez mais longa, demorada, aflitiva e, então, o desespero da minha mãe apanhava-me como uma rede, içando-me no vazio, como nos filmes, e tomava conta de mim sem piedade, entrava-me à força pelos poros adentro, atravessava-me o sangue e os ossos e depois rasgava a minha alma, o desespero da minha mãe despedaçava todo o meu ser e num instante reduzia a minha existência à mais pura solidão, como se eu tivesse caído por um barranco abaixo ou morrido afogado numa poça da ribeira.

A partir daqui eu ficava cheio de medo e gritava lá do fundo:

- Estou aqui!

A voz da minha mãe serenava:

- Anda para casa.

- Já vou.

É claro que eu sou um menino da mamã, mesmo tendo em conta as voltas que dei pelo mundo e os dias sem tostão no bolso e os anos de vida e vagabundagem em África e as roupas de zaralho que uso, mesmo assim, eu sou um menino da mamã. No Tibete, na Terra do Fogo, na Alta Zambézia, em todo o lado, fosse lá onde fosse, houve sempre uma hora, um segundo, um instante em que, estando distraído com alguma coisa, sei lá, a tomar banho de balde e caneco, a ver o pôr-do-sol, a beber uma cerveja num bar, a fazer qualquer coisa sem importância, ouvi a voz da minha mãe:

- Duaaarte!

E senti o seu desespero:

- Duaaaaaaaarte!

Hoje, voltei a casa.

A casa está vazia e rodeada de mato como se fosse uma ilha num oceano tempestuoso. É um lugar de mortos e de memórias, um lugar de silêncio e de solidão, um lugar que ficou parado para sempre no passado, embora seja patrulhado diariamente pelo Tonecas, o nosso cãozinho rafeiro e tão feliz, talvez o melhor cão que alguma vez tivemos.

A minha irmã tem uma relação positiva com a casa e está empenhada em trazê-la de volta à vida, com limpezas e pinturas e modificações e remoção de tralha. Eu, porém, tenho uma relação triste e distante e desesperançada, como se ela não me pertencesse ou como se eu fosse aquele que deitou a perder os sonhos dos antepassados. Seja como for, arregacei mangas e pus-me a limpar o mato na última semana de férias. Um trabalho duro, de muito suor, arranhões, picadas de insetos e nódoas negras, mas que se tornou também numa forma bonita do menino da cidade responder ao chamamento da sua mamã.

- Duaaaaaarte!

- Já vou.

E a podoa zune sobre o amor-de-burro.

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