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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

9/07/2021 08:02

Toda a minha vida e as voltas que dei pelo mundo cabem inteiras em cada passo que dou na terra onde nasci, aqui ao teu lado, meu amor, meu amor. Viver e viajar não é mais do que isto - amar e estar em casa - embora pareça sempre que é outra coisa qualquer.

Quando eu vivia em Moçambique, entregava-me de corpo e alma ao mistério da distância e da lonjura, perdido em estradas de terra batida a caminho de nenhures, eram viagens intermináveis, para baixo e para cima como um vagabundo, quase sem dinheiro, quase sempre sozinho, sempre à espera duma revelação, uma luz do céu, um sinal de Deus ou do nada, um lugar para ficar.

Volta e meia caía a pique no fundo do abismo.

Lembro de um dia em que mandei uma sms à minha irmã dizendo que andava muito abatido e que provavelmente iria regressar antes do previsto. Ela perguntou-me: O que foi que aconteceu? Eu respondi-lhe: Nada, simplesmente África. A imensa solidão africana.

É claro que eu estava a mentir, ou a tentar ser poético, ou a exibir uma porcaria de romantismo que não servia para nada. Na verdade, eu morria de saudades, estava esmagado por isso, mas não queria dar o braço a torcer, tinha de ir até ao fim, até ao vazio do ser. Às vezes, quando o aperto era muito grande e nada fazia sentido, eu fechava os olhos e punha-me a falar comigo. Assim:

- O que vês?

- Vejo a minha ilha. Sim, vejo-a emergir nas brumas do Atlântico, a minha pequena ilha em forma de folha de árvore. Vejo-a vir lentamente, como uma caravela antiga, à deriva no mar dos descobrimentos, uma bela caravela portuguesa. E também vejo as tipuanas e os jacarandás que ornamentam as ruas da minha cidade como se fossem os mastros dessa caravela perdida no oceano da memória. Vejo serras e as montanhas como se fossem as velas da caravela. Vejo os dias claros e eternos e o mar azul e transparente como se fossem as cores da caravela. Que linda caravela! A minha ilha! Uma caravela de ouro e prata!

E mantinha os olhos fechados. Mantinha-os sempre bem fechados.

- Em que pensas?

- Penso na minha ilha sem aqueles milhões de toneladas de cimento que lhe puseram em cima nos últimos anos; penso na praia aonde me levavam quando eu era miúdo; penso na magia dos candeeiros a petróleo em casa das minhas tias; penso nas andorinhas nas tardes de verão e nas bolas de sabão; penso no medo que tinha de Deus quando era criança; penso na venda do André onde fazíamos as compras; penso no rosto triste e preocupado da minha mãe e nas mãos fortes do meu pai; penso nos meus mortos, em todos os meus mortos; penso nos meus amores imaginados; penso nas minhas derrotas e nas minhas vitórias; penso nos papagaios de papel que o meu avô me ensinou a construir; penso no restaurante da baixa que frequento desde a adolescência; penso nos amigos que desapareceram e nos amigos que ficaram para sempre; penso no meu primeiro local de trabalho e no meu último ordenado; penso na primeira viagem que fiz e no dia em que decidi partir; penso no dia em que quis desaparecer em África; penso no dia em que desapareci em África.

- Queres regressar a casa?

Eu mantinha os olhos fechados. Mantinha-os sempre bem fechados.

Agora sei: Toda a minha vida e as voltas que dei pelo mundo cabem inteiras em cada passo que dou na terra onde nasci, aqui ao teu lado, meu amor, meu amor, porque viver e viajar é isto, isto mesmo - estar contigo, estar em casa.

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