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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

25/06/2021 08:12

Contaram-me que Belíssimo João e Mutepa Nada ficaram mais de cinquenta dias sem ver o chefe. Felizmente, o aparelho continuava em boas condições. Funcionava com oito pilhas das grandes e era duma marca chinesa cujo nome não conseguiam pronunciar, mas por baixo dessas letras indecifráveis estava escrito Super Bass Radio Cassette Player.

Tinha uma antena prateada composta por oito segmentos cilíndricos que se metiam uns dentro dos outros, ao estilo das bonecas russas. Quanto esticada ao máximo, a antena atingia uns estonteantes 160 centímetros e faiscava no meio do mato como um sinal de prosperidade e esperança.

A caixa era retangular, cor verde-tropa e cromada. Media 80 centímetros de comprimento, 25 de largura e 30 de altura. O cromado ficava à volta das colunas, uma em cada extremidade. Possuía um monte de botões e uma pega para facilitar o transporte, mas carregá-la todos os dias pela savana adentro era um incómodo do caraças, não dava jeito nenhum.

Por isso, Mutepa Nada confiou a tarefa a Belíssimo João, enquanto ele se encarregava da AK47 e do cinto com as munições. No entanto, sempre que chegavam a uma povoação amiga, a tarefa de transportar o aparelho transitava automaticamente para si e ele tornava-se o centro das atenções, como se fosse o poeta da história. Belíssimo João ficava então com a arma e as munições e aparecia à frente das pessoas como o mau da fita, o homem que mata.

Se fosse outro, Belíssimo João ficaria ressentido e recusar-se-ia a carregar o aparelho de rádio quando voltassem ao mato, mas não era o caso. Para ele, a vaidade de acartar a caixa de música era exatamente igual fosse lá onde fosse, na selva, numa cidade cheia de gente, num cemitério à meia-noite.

O que conta é a essência da coisa, pensava Belíssimo João, sem, no entanto, dizê-lo ao amigo, pois também pensava que é preciso esmagar milhões de homens para se obter uma só gota de essência humana. Temia ofendê-lo com uma filosofia deste tamanho, que ele próprio não entendia muito bem. Por isso, não dizia nada. Ficava calado.

Para Belíssimo João, carregar o aparelho não valia por chamar a atenção das pessoas, mas pela ímpar nobreza de transportar a música, sobretudo quando estava desligado. O silêncio que emanava da enorme e desconfortável caixa verde-tropa possuía uma profundidade avassaladora, que penetrava na alma da gente e da floresta como um unguento sagrado e delirante.

Belíssimo João sentia-o em carne viva, mas não era capaz de explicar com palavras, tal como não conseguia dizer a marca do rádio. Então, punha-se de cócoras e ficava a olhar para o aparelho, mas não encontrava o modo certo de verbalizar o sentimento, assim como aqueles homens que não conseguem dizer amo-te à mulher que amam e depois morrem sozinhos.

- O importante é a essência da coisa - pensava.

O aparelho de rádio era, contudo, uma arma.

Fora-lhes entregue pelo chefe, juntamente com uma kalashnikov, um cinto com 450 munições, uma cassete e um mapa com a indicação das zonas de combate.

- O vosso teatro de guerra é este - disse o chefe, fazendo um círculo no mapa com uma esferográfica vermelha.

Belíssimo João e Mutepa Nada desviaram o olhar do aparelho para o mapa com muito esforço, como se o desviassem duma mulher bonita para um cão tinhoso. Aceitaram a incumbência de bom grado, embora pressentissem nela qualquer coisa de malévolo, e partiram para o mato a fim de atormentar e afugentar os habitantes das aldeias, abrindo caminho à passagem dos guerrilheiros. A tarefa era simples: davam dois ou três tiros para o ar e depois colocavam a cassete a rodar, com a gravação de trinta ou quarenta homens a disparar armas de fogo e a gritar ao ataque.

O povo fugia em pânico. E eles prosseguiam em paz.

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