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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

18/06/2021 08:02

Um dia, há muitos anos, quando comecei a trabalhar no jornalismo, desci da redação à rua com um colega, à hora do lanche, na parte tarde. Era um gajo com quem me dava bem e ele disse-me que eu devia ter mais cuidado com a roupa que usava, porque a profissão requeria boa apresentação, devido ao contacto diário com os senhores do poder e outros que tais e afins, essa gente fina e rica que anda sempre de fato e gravata e as gajas também, com aqueles vestidos caros, percebes?, todos muito perfumados e alisados, cheios de manias, e depois ficam lixados quando um gajo aparece mal vestido ao pé deles, tipo zaralho esfarrapado, percebes?, tipo desgraçado sem eira nem beira.

- Tás a ver? - Reforçou.

- Sim, sim, tou a ver - respondi.

E, para eliminar dúvidas, contou-me que havia gente na redação que revirava os olhos e ria-se de mim nas costas por causa das minhas botas de caçador, que na verdade eram umas Palladium de lona de cor caqui. Eu adorava aquelas botas. Mas, por sinal, os outros não. E também estimava muito a minha roupa, que não tinha nada de especial, a não ser que era quase toda preta e coçada, mas os outros claramente não.

- Sabes como é - disse-me ele. - São todos uns sacanas, uns intriguistas de meia tigela, mas a gente tem de ter cuidado com o que veste, lá isso tem!

E eu respondi:

- Tem, sim senhor! Claro que tem!

Ele franziu a testa, suspeitando que eu estava a ser irónico.

- Homem, então! Claro que sim! - Teimei.

O meu colega sentiu-se orgulhoso e mandou vir duas cervejas para acompanhar o lanche e regar os seus conselhos, ali debitados ao balcão, após o que nos perdemos numa conversa sobre o sentido da vida e a razão de ser das coisas, com muita filosofia à mistura, muita poesia, muita esperança, alguma revolta e toda a imortalidade da juventude a servir-nos de amparo.

Eu, porém, continuei a usar as botas e o mesmo tipo de roupa, em parte para provocar os senhores do poder, bem como todos os que olhavam de lado para mim, e também para desafiar o meu colega, cujo rasto perdi ao cabo de uns anos. Hoje em dia, mantenho a mesma atitude, porque sou incapaz de valorizar o exterior do que quer que seja, pessoa ou coisa ou arte, sem antes conhecer o seu interior.

Seja como for, ficámos amigos.

O gajo desencaminhava-me a toda a hora e a todo o instante.

- Vamos tomar um copo - dizia-me ele às duas da tarde, às quatro, às seis, às nove.

E lá íamos.

À noite, saltávamos de bar em bar nos arredores, enquanto esperávamos pelo último autocarro para casa. Uma vez, quando faltavam apenas cinco minutos para a derradeira viagem, bebemos três imperiais de seguida, umas atrás das outras, em cima das muitas que já tínhamos ingerido, e saímos apressados, mal controlando as pernas.

À porta do bar, eu soltei um tremendo arroto e, sem querer, expeli uma quantidade incrível de espuma de cerveja pela boca e pelo nariz, uma coisa horrenda, e fiquei lívido como quem vai morrer. Perante o espetáculo, o meu amigo arregalou os olhos com altivez e surpresa e, por um momento, deixou de ver onde punha os pés, acabando por tropeçar em três contentores de lixo, que tombaram alegremente e verteram o seu real conteúdo na Rua D. Carlos I.

Rimos da figura um do outro e perdemos o último autocarro.

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