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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

14/05/2021 08:04

A primeira vez que ouvi falar de Fernando Ribeiro Torto pensei que ele não existia, pensei que era uma ficção ou, quando muito, uma confusão. Isto porque quem me falou dele foi um dinamarquês que conheci em Ushuaia, em 2005. O dinamarquês disse-me que estava a dar uma volta completa ao sul do mundo por causa de um livro daquele escritor português, intitulado “The South Of My Soul”, na tradução inglesa.

Eu encolhi os ombros:

– Nunca ouvi falar.

Knut Larsen, o dinamarquês, afiançou-me que se tratava de uma obra pequenina, pouquíssimas páginas, mas muito inspirada e inspiradora, tanto que o pusera a rodar pelo sul da Terra como quem roda pelo sul da própria alma e isto pareceu-me uma coisa muito poética e cheia de aventura, mas também algo perdida e alucinada, bem ao estilo dos vagabundos e dos viajantes sem destino.

– Mostra-me o livro – pedi-lhe.

O dinamarquês tinha perdido o exemplar há pouco tempo, talvez esquecido num bar, talvez caído numa rua, talvez adormecido num avião ou num comboio ou num barco, ele não sabia. O certo é que um dia acordou e deu conta que já não o possuía e ficou triste por isso.

Depois, explicou-me que Fernando Ribeiro Torto, embora vivo e ainda relativamente jovem – não teria sequer 50 anos naquela altura – era de tal modo obscuro que não se encontrava uma única referência a si em lado algum, nem sequer na internet, coisa que me pareceu absurda e levou a crer que ele confundira o nome e a nacionalidade do homem ou inventara aquilo para gozar comigo, talvez por eu ser português e lhe parecer estrambólico e divertido encontrar um português em Ushuaia, como se também não o fosse encontrar lá um dinamarquês.

Knut Larsen e eu estivemos ainda mais dois dias a viajar juntos na Terra do Fogo. Depois, ele ficou lá e eu voei para Buenos Aires e dali para Madrid e a seguir para o Porto, onde permaneci uma semana, de terça-feira a terça-feira.

E, então, aconteceu que, na segunda-feira antes de regressar ao Funchal, detive-me três ou quatro segundos diante da porta de um alfarrabista e nesses três ou quatro segundos a minha cabeça entendeu que aquele era um lugar mágico, cheio de perigos e surpresas, capaz de me revelar uma parte substancial do encantamento do mundo e do seu horror também.

Entrei.

A loja era profunda e escura e parecia uma caixa para a qual tivessem atirado montes de livros ao acaso, de tal modo que em duas ou três ocasiões perdi a noção do espaço e quase caí. Às tantas, dei comigo a segurar um livro fininho e só então percebi que andava a passear com ele na mão desde que entrara no estabelecimento. O título era “O Espelho da Solidão” e o autor Fernando Ribeiro Torto.

Fiquei pasmado e, sem querer, disse em voz alta:

– O cabrão do dinamarquês tinha razão!

Folheei o livro. Tinha 96 páginas e não trazia foto do escritor, nem nota biográfica. Era uma edição de autor, de 1998, de capa mole, sem prefácio, sem qualquer apresentação. Li o primeiro parágrafo: “A vida é simples vista à distância, porque não se nota o emaranhado dos pormenores nem o fluxo das emoções. Veja-se a minha, por exemplo.”

Na última página havia a seguinte referência:

Do mesmo autor: O Sul da Minha Alma.

E eu repeti em voz alta:

– O cabrão do dinamarquês tinha mesmo razão!

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