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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

23/04/2021 08:04

Hoje não tenho nada para dizer. Estou vazio. É uma coisa que me acontece de vez em quando, a mim e a toda a gente, acho eu. Por isso, vou falar acerca da obra-prima de Salazar Silva, intitulada "Cadernos Para Um Despertar", porque me divirto imenso a ler aquilo. Quando não há nada para dizer, fala-se dos outros. É assim, não é? Antes, porém, quero deixar claro que tentei escrever uma coisa minha, a sério, mas não consegui. Estou em silêncio. Não oiço palavras dentro de mim há vários dias, talvez semanas, meses. Nada. Nem sequer um eco.

Ainda assim, houve um momento, anteontem, em que fechei os olhos e vi uma joeira no ar, senti o fio de cânhamo a correr nas mãos, o vento a levá-la cada vez mais longe pela ribeira acima, já passava a igreja da Visitação e eu ouvia-a roncar na distância, a joeira que o meu avô me ensinou a fazer, um brinquedo tão simples e prodigioso, três canas fininhas, o papel comprado na venda do André, uma folha vermelha, outra branca, colado com milho cozido, o rabo feito com tiras de pano, roncos triangulares, cabeços fortes e bem alinhados, para não rodopiar quando o vento aperta e o fio acaba, e lá estava ela no ar, a minha joeira no céu do Laranjal, tão airosa e galante, e eu pensei assim:

- Vou escrever sobre a infância.

Abri os olhos.

Fiz mal.

Desapareceu tudo.

Parece que não foi aqui. Parece que não aconteceu.

Irritado, desesperado, lixado com tanto silêncio dentro de mim, pus-me a ler Salazar Silva, autor do desconcertante "Cadernos Para Um Despertar".

Como todos sabem - diz ele a certa altura -, existem três pilares que sustentam o ser humano e, por mais voltas que se dê, ninguém os consegue substituir: saúde, dinheiro e amor. Quando estão em harmonia, ou seja, quando apresentam as mesmas dimensões, a existência é básica e feliz. Pelo contrário, quando as medidas diferem entre si, a vida é triste e básica.

Às vezes, os pilares não passam de meras estacas, sugerindo uma inevitável derrocada para breve. Noutros casos, vemo-los sólidos e robustos, como se nunca fossem cair. Também acontece ser cada um à sua maneira, de modo que, com apenas três pilares, é possível fazer variadíssimas combinações, que correspondem às variadíssimas formas de existir.

Quando se dá a rotura de um pilar - diz Salazar Silva -, ocorrem três coisas, regra geral por esta ordem: a vontade da morte, a vontade de regressar com urgência à normalidade e a vontade da superação. Há sempre uma que triunfa, mas pelo meio abre-se a caixa dos males e soltam-se os pecados. Desenha-se a consciência e nascem os horrores. Cedo ou tarde, o homem percebe que perdeu a inocência e ruma com ânsia ao passado, tentando reencontrá-la. Regressa sempre de mãos vazias e coração desolado. É já noite e ele precisa de descansar. Com esforço, reconhece que não lhe falta nada, no fundo não lhe falta nada, mas mesmo assim não dormirá em paz.

Há sempre um pilar que vacila e cede.

De repente, o pior tempo da nossa vida bate-nos à porta.

Saúde, dinheiro e amor.

A estrutura é tripla - esclarece Salazar Silva -, mas comporta um quarto pilar, invisível, porém fundamental para contrabalançar as deficiências e fraquezas dos outros: é o pilar da fantasia. Mesmo quem possui muito dinheiro, boa saúde e amor-perfeito em abundância não vive sem o quarto pilar. Há milhões de pessoas - eu diria, sete mil milhões - agarradas de unhas e dentes ao pilar da fantasia e, por isso, nunca nos falta nada, deuses, anjos, milagres e marcianos, filosofia, aventura e mistério, ciência, tecnologia e idade da pedra também, mas sobretudo esperança e mentira.

O problema é que…

E, nisto, adormeci.

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