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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

9/04/2021 08:04

O sonho era bom, muito bom. Eu estava num lugar onde decorria uma guerra fria e brutal, mas apesar disso gostava de lá estar. O lugar era mágico. Havia castelos e princesas e eu tinha uma espada luminosa e estava do lado dos vitoriosos, o que não quer dizer que estivesse do lado dos bons. Além disso, os corpos tombados no campo de batalha não tinham nada a ver com os mortos da vida real, os nossos mortos de cada o dia - o pai, a mãe, a tia, a mulher, o filho, o amigo, todos os que nos fazem chorar - nem sequer tinham nada a ver com os mortos de verdade que aparecem nos telejornais ou nos filmes a fingir. Eram anjos, não vítimas como nós. Eram tiranos, não culpados como nós. Eram tudo, não nada como nós.

Eu estava muito feliz naquele sonho, sem dúvida, porque combatia ao lado dos vencedores e não havia sofrimento nem suor nem sangue na luta. Mas, de repente, o chão abriu-se debaixo dos meus pés e eu comecei a deslizar por um abismo, a cair lentamente, quase sem fim, como uma alma a sair do corpo - não na hora da morte, mas no tempo da vida - ou como um avião a despenhar-se em câmara lenta, sempre a cair e a cair perdi a armadura, o elmo e as armas, até que acordei estendido no chão, embrulhado no lençol, e tudo se desfez - a guerra, os anjos, as princesas e os tiranos também, assim como a felicidade de estar ali. Não sobrou nada, a não ser eu. Como sempre.

Estendido no soalho de tacos, perplexo com o acontecimento - este cair da cama durante o sono, coisa que não me ocorria desde miúdo -, pensei assim: Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida, mas também pode ser a véspera da tua morte. Nunca se sabe. Nunca te esqueças. O verso que não se canta é sempre o mais perturbante do poema, não vos parece? É como a palavra que não se diz, ou o gesto que não se faz, ou o olhar que não se cruza. Digo-vos: O não ser das coisas é profundamente inquietante, assustador. É como morrer sem ter vivido. Mete medo, não acham? Morrer sem ter vivido.

Quando isto aconteceu, há muitos anos, eu estava longe de casa, estava em África, na Alta Zambézia. Vivia numa missão católica, onde dava aulas de Português. Tinha um quarto só para mim, com uma janela ampla, virada para o muro de tijolo que circundava as instalações e para lá do muro eu avistava a copa das árvores e alguns telhados de zinco do bairro e as montanhas ao fundo. O quarto estava equipado com uma secretária enorme, sólida, robusta, sobre a qual escrevi até à exaustão em cadernos baratos que depois atirei ao fogo - foi uma loucura, eu sei, agora estou arrependido -, mas em contrapartida a cama era pequena, era mesmo pequena.

Eu cabia nela, é claro, mas nos primeiros tempos, como não estava ainda habituado, os sonhos arrastavam-me volta e meia para o chão e aquilo, não sei porquê, entristecia-me, dava-me vontade de chorar, e eu chorava no meio da noite, esmagado pela solidão ao acordar estendido no parquet, enrolado no lençol, conduzido até lá nas asas do sonho, derrotado pela realidade, eu ali sozinho, rodeado de perigos e encantamentos, perdido no hemisfério sul, num país do terceiro mundo, tão distante de tudo o que até então tinha chamado de meu e não era, não era.

De meu, agora sei, tenho apenas a vida que me trouxe até aqui, até hoje. Um dia de cada vez - só pode ser assim, apesar de nem sempre ser assim - e cada um foi o primeiro dos restantes e a véspera do último. É o único em falta. O último. O resto, já se sabe, é história - a verdadeira e a ficcionada - e isso inclui todos os caminhos percorridos à face da Terra, esta que me cerca e a outra também, a que está dentro de mim. É um labirinto. Às vezes, porém, assume a forma de cama pequenina, suspensa no vazio, de onde o sonho me abica para a realidade. E eu caio.

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