Já pensei tantas vezes que escrever torna a vida fingida, pura imaginação, um logro perfeito, redondo, mas provavelmente estou enganado. Seja como for, os anos correram e eu fui perdendo tudo, como artista e como sonhador, perdi todos os livros que poderia ter escrito e todos os livros que queria escrever, perdi tudo menos a magia da vida, isto que trago nas mãos vazias:
- Toma, é para ti.
Tu olhas e não vês nada, eu sei, não tem forma nem peso, sou eu agora, eu depois de tudo o que fui desde o Hospital dos Marmeleiros, onde me levaram para nascer em 1967, sou eu também até ao fim do mundo, onde fui e vi que o mundo não tem fim, caramba, não tem mesmo fim, e depois voltei, estou hoje aqui como sou: Exposição Universal de Mim Mesmo - Duarte Caires 2021.
Este sou eu agora, aos cinquenta e três.
A mãe tinha razão: perdi tudo ao correr dos anos, ou quase tudo, incluindo ela que morreu tão nova, tão nova, mas ainda não perdi a vida, sua luz, sua escuridão, o pulsar do meu coração, o dizer amo-te. Isso continua comigo. Intacto.
Eu digo:
- É muito.
Os outros respondem:
- É nada.
E depois começam:
Onde está o dinheiro, a carreira, a fama? Onde está o carro, a casa, a família perfeita? Onde está o que parece e não é, a festa, o fingimento? Onde está aquilo que eu sou e tu nunca vais ser, o meu querer, o meu sonhar? Olha para ti. Não vales nada, dizem. E estão seguros quando falam assim, tão duros, tão feitos de pedra, meu Deus, sabem tudo e são determinados como estátuas no reino dos céus, puta que os pariu.
Alguns, só para me ofender, acrescentam como quem goza de si:
- Quem me dera ser como tu!
É tão salutar gozar um pouco de nós mesmos, não é?
O almoço foi peito de frango com arroz de açafrão e cobertura de rúcula, um tomate-cereja cortado ao meio, vejam só, um tomate-cereja cortado ao meio em cima daquilo tudo, como se fosse o ingrediente principal.
Ao fundo, as sumaúmas pareciam esqueletos de peixes pré-históricos nas profundezas dos mares antigos e eu pus-me a olhar as mesas em redor, as que estavam em silêncio, as ruidosas, as solitárias, o livro também e o telemóvel, a praça, a praça.
- Onde estás?
Era a voz do meu pensamento, mas falava para o vazio, o lugar dos deuses, porque insisto em procurar um Senhor a quem servir para além dos que estão à mão de semear, um Senhor glorioso e inviolável, pelo que adotei uma postura aparentada à dos eremitas, na esperança de que o deserto e as cavernas me tragam um sinal da sua presença. Digamos que faço um certo esforço por me manter afastado da vertigem do século, pois o meu Senhor é intemporal e errante, passa e não deixa rasto, a não ser a solidão de quem o persegue.
- Onde estás?
Bem vistas as coisas, acho que nunca me afastei de Deus, mesmo quando o tomei por morto ou quando o matei. Dos mortos ninguém se afasta a não ser por morte própria. Ou talvez me tenha afastado, talvez tenha viajado para longe dele e do seu sepulcro, assim como quem vai de férias ao estrangeiro e depois prolonga a estada por vários meses, por vários anos.
Agora, porém, prefiro viver sem Deus do que viver de mão estendida para ele, choroso e suplicante nas horas amargas, indigno e ingrato na hora da fortuna, como se o seu toque não valesse nada e fosse apenas uma bugiganga para enfeitar o meu sofrimento ou as parcas vitórias da minha existência - um Deus Tomate-cereja Cortado ao Meio no topo da salvação. Deixo-o de parte, lá sossegadinho no céu, e prossigo por minha conta e risco.