Todos os dias são fim

Todos os dias morremos. A casa veste-nos o corpo morto e as mães mortas ressoam do fundo da terra. Aquecem-nos os gemidos das suas mãos cheias de cansaço e inocências. A pele arrefece primeiro que as veias e os olhos devoram as primogénitas flores da infância. Há uma cama que se ergue ao centro da casa enquanto te amo pela última das vezes. Pela primeira vez. Vês? No meu peito há um buraco para o coração, e cavo o silêncio no breu incandescente que nasce das bocas de misteriosos felinos. Os teus braços devolvem-me quase sempre à mulher que não sabe morrer, invisível como o torpor de um Deus que não fala e morre o dia inteiro..

Não sei em que caule sobrevive o calor da minha mão que escreve. Não sei porque escrevo como se morresse e todos me morressem. Vivos e mortos à luz do mesmo dia.

Agora que a noite começa e os corpos se encontram sem poderem tocar-se, compreendo como tudo é longe sem que cheguemos a sabê-lo. Por exemplo, se digo o teu nome só até à garganta, é provável que ele não venha a existir. Se a minha mão se move, mas não cai sobre o teu ombro, talvez aqui não estejas afinal. Se os meus pés pisam a terra, mas não são o lugar, então não sei para onde vou. Não saberei onde ir morrer.

"O que eu digo é bastante simples: a gente precisa de encontrar o seu verdadeiro lugar para morrer. Aí é que se vive." Nunca me desvio deste pensamento de Herberto Helder, e vejo nele uma espécie de epicentro da melancolia, que mais não é do que a vida toda sabendo-se fim. Por fim.

Silêncio contra o vento, aqui, onde o perigo é nulo porque as palavras se autodestroem na ausência.

Quanto tempo resta ainda para a beleza? Onde encontro, de novo, ressuscitado, o côncavo quente da tua axila? Diz-me como subo ao inferno respirando sempre, ensina-me a ferir os pés como no princípio. Quando? Não abondemos as feridas nem a sofreguidão do amor. Sejamos a casa estendida até ao mar que nunca vimos. O quarto onde nunca entrámos para dormir.

Agora que é o fim, e estamos tão distantes da primeira morte, desce e vem recolher a última luz de todas as minhas sombras. Tu sabes, o medo tem norte e nasce do alto, é corpo nu de mulher inteira pronta para o abismo. Abraça-o. Quanta beleza nesse estremecimento primário, nessa anunciação carnal de morte antes do tempo. Somos um. Inocentemente somos um e adormecemos contra o tempo e o lugar. Temos as mãos lisas da infância para uma nova morte.

Morremos.

Mortos contra o tempo, respiramos ainda. Subimos. Estas mãos hão-de salvar-nos.