Como na hora da nossa morte
O inferno é ser sempre tarde. É não sabermos da descida dos olhos até ao céu, do caminho das pontas dos dedos desfalecidos enquanto se move um rosto na escuridão dos dias. Das horas breves de tão intermináveis.
Há uma velocidade inaugural no Outono, esse Inverno lento que cresce das árvores antes do tempo. Outro tempo. Outras árvores.
O frio apaga as suas margens surdas até ao nervo da única estrela, e eu deixo de ouvir a estação. Todas as estações. Há esta ruga que passou a atravessar o lado esquerdo do meu pescoço, uma lança ainda incompleta apontada ao coração. Hoje não. As minhas mãos tremem do calor de antes e são capazes de segurar um homem ferido. É preciso não nos esquecermos, é preciso limpar as mãos com o sangue dos invernos sucessivos, deitar o corpo sobre as pedras e as armas fumegantes.
Agora como na hora da nossa morte.
Há uma idade tardia que vem do fundo do peito da terra, um suspiro à luminosa profundidade da terra, límpido clamor saído das têmporas. O inferno é uma anunciação que o vento agarra pelos rápidos pêlos da pele. Tarde e violentíssima nasce a flor frontal por dentro da mão que a descobre. É tarde para a vida e para a morte; mas o tempo não pára nem morre. Nem fala nem devolve.
Socorro-me do homem ferido, lavro e lavo a sua ferida no sal da minha boca. Basta uma palavra e serei casa, uma branca palavra no restolho da noite à espera de outra língua, outro lugar para entardecer. Nem tudo as palavras podem. Nem isto nem nada.
Agora que os cisnes se alagam de novas margens, a minha garganta anseia por sedes definitivas. Quem sabe uma palavra de esplêndida santidade sem o martírio de Deus. Só uma vocação inteira para o deserto. Para o amor e a memória.
Sabes o que é a pureza? O teu cabelo húmido nas minhas mãos, que tremem sem saber, plenas de tempos e lugares onde não estive. Elas sim. Impiedosas deusas do devaneio de morrer. De que se morre.
Eu não quero morrer de velhice, mas de inocência. Perdendo-me nos seus largos corredores como na água dos teus cabelos. Esperando pacientemente pelo fim do caminho da lança no meu pescoço, de um lado ao outro. Em tudo inteira. Última, digo.
Que espanto; amar em silêncio um sulco no ventre. A fraqueza atemorizadora das minhas pernas de criança atravessando lisas estações, como se regressassem de tempos e lugares impossíveis. De vozes sopráveis e imperscrutáveis quartos.
Inferno. É tarde.
Secou já toda a água dos teus cabelos, e é mortal o seu voo descido até às minhas mãos em sangue. O meu corpo na tua ferida.
Como na hora da nossa morte, agora.
Susana de Figueiredo escreve
ao domingo, de 4 em 4 semanas