Cabe um relâmpago no impossível
Se eu soubesse, ainda, entrar no teu corpo. Ser a flor nascente submersa no sangue da tua pele. Tu sabes, conheces todas as minhas inclinações, sobretudo a mais profunda, esta que aqui me tem e me dota para o impossível. Sempre tive uma propensão para o impossível, para a beleza que jorra de uma veia errante, o sonho que nunca desce até ao corpo. Este corpo. Talvez seja ele feito de impossível, de impossíveis nervos, ossos, músculos, pêlos, vísceras, unhas.
Se eu pudesse, ia. Tu sabes, não sabes?
Navegava os olhos nos teus ombros limpos até que voltasses o teu corpo para o meu; mas o medo tem mãos de dilúvio e eu já não posso ser água. Se eu pudesse gritava pela vertigem, irrompia este silêncio e tocava ao de leve no primeiro fio do teu cabelo. Descobria nos teus flancos o ardor da tempestade, ainda antes de poderes ver-me. Morreria da longitude dos teus braços sem saber se algum dia me havias tocado.
Lume antes do Amanhecer, uma colher vazia para me dar a comer a tua boca. Vê como caem os meus olhos sobre a tua pele. Sou um relâmpago sem luz à procura da ternura no grão da terra. Não sei onde estás quando abro os olhos, é a precisão do sonho que me traz o teu rosto ainda húmido, e só então posso crer no impossível. Na raiz encoberta no antebraço ou na imensa solidão de uma cama por abrir.
Daqui, consigo ver o recorte do teu corpo na escura luz da tarde, e, de uma estranha forma, é essa exaltada insinuação que me basta. A melancolia movida a silêncio, um corpo pesado destruindo devagar o telhado da sombra.
A minha mão, imóvel, ama lentamente a tua boca. Sem ti, sou uma estreita paisagem que o mar devolve às pedras, escorrego como um peixe que não sabe regressar ao conhecido. A devastação sobe como uma ilha, as ilhas sobem até ao fim e são mulheres uma última vez. Têm braços e pernas lucilantes, corpos ferventes voltados ao mar. As ilhas são altas por dentro e abrem a carne da memória. São cardumes-mulheres.
Eu sei, é impossível parar nos tremendos altos ou enterrar as mãos na folhagem arrefecida. As minhas mãos são duas pedras que escondo noutras pernas, noutras perdas.
Se eu soubesse das lunações que deixei para a frente, quando o aroma a terra era ainda coado por um tempo atroz. Se eu soubesse das minhas fundas inclinações como tu sabes desta lua descarnada onde o meu coração pára. Mas não. É o impossível que vem e me arranca todas as ramagens pelo escalpe. E de todas as vezes que me dói, eu amo. Inclino-me inteira sobre o teu corpo e respiro o incalculável silêncio dos teus poros.
Um instante infernal de tão límpido. Uma rasa última vez antes da morte.