Valentina

Se eu pudesse, Valentina, fazia-te minha filha. Rasgava o meu corpo de alto a baixo para que entrasses no meu ventre e pudesses nascer mais uma vez. De mim. Tu. Se eu pudesse, roubava-te à casa que desabou sobre a tua inocência, sobre o teu corpo pequenino, e apertava-te inteira contra o meu corpo de mãe. Dói. Doeu-te tanto. Doeram-te. Perdoa-me por falar-te assim, daqui, de tão longe, sem saber, sem saber-te. 

Perdoa-me por isto, por escrever-te sabendo que não há palavras de conserto, que não haverá nunca texto que sirva, que explique, que sopre as tuas feridas e corte o mal pelo princípio, pela raiz do coração, nesse derradeiro lugar onde o mal jamais poderia ser. Perdoa-me esta ousadia de trazer-te para dentro de mim, perdoa-me o egoísmo destas palavras inúteis, que são agonia, e, desgraçadamente, servem apenas para tentar lavar a minha própria dor, a minha tremenda angústia, a minha revolta contra todos quantos te falharam [falhámos]. Valentina, eu, sendo mãe, não sou só mãe da minha filha, sou também a tua e a de todos os filhos que não são meus. Sei-o porque, nestes dias de horror, e em todos os outros que estão por vir, te vejo inteira nos olhos vivos da minha filha e agarro o frio das tuas mãos no calor das dela. Sei-o porque as mães, quando são, não têm margens, são enormes e ininterruptas, entendem a linguagem dos pássaros e estendem as suas asas até ao sono agitado dos filhos. Comem-lhes as mágoas e as lágrimas; e sofrem, adoecem, e morrem se preciso for. Não nos conhecemos, querida Valentina, e, no entanto, guardo-te agora dentro de mim. Não sei se fui eu a chamar-te ou se foste tu que vieste. Simplesmente vieste. Sinto-te neste incomensurável vazio que, pleno de ti, me atravessa em faúlhas o corpo de mãe. Não paras de me doer, Valentina. Tenho este grande amor inválido para te dar… Que ironia tão maligna. Perdão, Valentina.

Se eu pudesse, trancava as portas de casa até que Deus viesse abri-las. Se eu pudesse, esperava quieta pelo barulho das mãos de Deus rodando a chave. Não quero sinais nem indícios, não quero uma luz em vez de um rosto ou um silêncio em vez da sua mão na minha, na tua. Estou cansada de ser intérprete. De supor, de imaginar. De crer sem ver. De ver sem crer. Se eu pudesse, fazia de Deus um homem, gritava-lhe o inferno para dentro dos ouvidos, contava-lhe das dores e das fúrias, do sangue, de todos os amores não-salvíficos. Pai, Pai, porque a abandonaste?

Creio, porém, ou talvez faça muita força para acreditar, que tudo isto não é, afinal, sobre Deus, mas sobre nós, homens e mulheres, pais e mães, monstros e mais monstros, monstros ninguém. Creio que o vírus mais mortífero somos nós; matamos e morremos do tanto que não somos para os outros, do tanto que não amamos, do tanto que não nos amaram. E não, não há confinamento maior do que esta estada contínua de pés semeados na terra à espera de melhor céu. Não há vírus que supere esta câmara escura onde, brutalmente, te interromperam, menina minha, filha Valentina.

Não sei como dizer-te que as mães, mesmo as que são, nem sempre salvam, nem sempre se salvam. Na verdade, nem sei como dizer-me mãe não podendo tudo contra o mal, não podendo guardar no ventre todos os filhos que não tive. Como vencer demónios no escuro e à luz do dia? Como arrancar um anjo à escuridão? E Deus, deuses, onde param? Há quanto tempo não sucede um milagre? Há quanto tempo as mãos de Deus não descem pelos cabelos das crianças, quando o céu e a terra são uma única e impenetrável escuridão? Valentina. Não sei como dizer-te que Deus existe depois do que viste. Quantas trevas esconderia o teu sorriso? Quantas vezes os segredos e o medo foram maiores do que tu? Quantas vezes ninguém te viu?  Quantas vezes não viste ninguém? 

Que feridas tão fundas, medonhas, para sempre, abrem as tuas na minha fé em Deus, nos homens, no amor, na poesia. Onde está Deus, onde estão os homens? Para que serve uma mãe que não salva, um poema que não repõe o que foi desfeito, um Deus que não cai do céu? Perdão, Valentina. Falhámos(-te) todos. Faltámos todos onde tu já não estás [que tempo, que (i)mundo]. Resta-me esperar, sem fé maior, que o céu exista e os dedos de Deus irrompam da pedra, como carne da tua carne; e abram a porta de casa, e desçam então pelos teus cabelos até ao fim de cada ferida. Valentina.