De que morremos?

Agora que aqui estou, parada e meio cortada ao meio, entre quatro ou mais paredes, penso no primeiro sentimento de todos. Não, não foi o amor, foi o medo. Ou de um lado o medo, do outro o amor. Um abismo de veludo entre os dois. Agora que estamos proibidos de tocar os outros e eles proibidos de nos tocarem, entendo melhor o frio das crianças vivas e o falso calor dos mortos. Parar é morrer, dizem, mas talvez nos falte morrer mais vezes, talvez nos tenha faltado morrer, talvez nos tenha faltado fim. Antes, muito antes, por dentro dos normalíssimos dias em que nos confinámos a essa antiga e saudosa banalidade, que não matou, mas foi correndo, corroendo. Até agora.

E agora que viemos todos para dentro, com medo da morte, com medo do fim, saberemos ainda entrar pela mesma saída, adormecer sobre as próprias costelas, agora mais limpas que nunca? Saberemos voltar ao princípio? Há tantas formas de morrer antes do corpo. Deveríamos sabê-lo. Não pares, cuidado! Se páras morres. Se páras morres.

Agora que corremos como linces à frente do invisível, agora que somos árvores inquietas e o único caminho é o de casa, saberemos para onde ir? Saberemos ficar?  Os relógios param e os pássaros descem do céu, as flores recolhem à terra, há palavras despenhadas contra o ferro enquanto o mar é uma boca na minha boca, gato moldado ao ventre. A dança antecede o movimento, esfregamos a pele até ao escalpe, até ao sangue. Nunca fomos assim, à espera, tão estranhamente límpidos e intermitentes. Água e sabão para matar, água e sabão para respirar. Não tocar, não beijar, não abraçar. Não e não. Silêncio nas estradas que não vão a lado nenhum, este silêncio centrípeto inundando as ruas por onde passámos sem saber, encarnadas ruas vazias para a cuspidela do monstro. Parem! É proibido falar, é proibido aproximar, é proibido sair. É proibido.

Quão extraordinário é o poder do invisível. Eu sei que não devia, mas não deixo de ver em tudo isto uma tumultuosa inutilidade, uma inépcia quase pueril – a criança que se julga oculta atrás da cortina –. Estamos numa estação nova, incógnita, tão trágica quanto bela; pelo menos para quem crê, como eu, que existe sempre um grosso laivo de maldição em toda a grande beleza. Nem sempre a beleza é benigna. Este é o tempo de morrer, mas também o de ressuscitar cada sopro que foi em vão. Agora, antes que o ar nos sufoque contra o veludo e o vingativo corpo nos mate.

Daqui, do lado de dentro, longamente sentada à minha janela, abro-a para outras escuridões, deixo alastrar em mim a queimadura do mar por vir e penso nas pessoas que amo, naquelas que me amam e nas que quase amei, nos queridos desconhecidos que me comovem. De vez em quando, penso também naqueles que, noutro tempo, noutra pulsação, poderia ter amado, longe, no lago profundo onde somos sem fim. Aí, nessa viagem ao fundo, amo o filho que não existiu, o homem que me perdeu. Amo.

Eis-me aqui para o impossível. Para a vida e para a morte. Para o medo como para o amor. Primeiro o medo, depois o amor. Ainda.

No fim, por fim, transformada a rosa em veia, velhos e novos hão-de morrer do mesmo, de contágio.